Saturday, November 12, 2011

A Polícia e a Universidade


Como aluno da USP por três anos e da Unicamp por quatro, sinto-me no dever de manifestar algumas opiniões sobre a presença da polícia nos principais campi das duas universidades e tentar desfazer algumas ideias superficiais sobre o tema.
            Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que existe uma grave onda de criminalidade assolando tanto o entorno quanto a parte interna de ambos os campi; especialmente assaltos, estupros e tráfico de drogas. Diante desse quadro, delineiam-se apenas duas soluções: a primeira seria a aquisição de armas de fogo por parte de alunos, professores e funcionários, complementada pelo necessário treinamento para seu uso em situações nas quais a autodefesa se fizer necessária. A segunda seria contar com uma força auxiliar especialmente treinada para coibir atos criminosos: a polícia militar ou uma guarda universitária devidamente equipada e treinada para enfrentar criminosos. A partir de um rápido exame das duas alternativas, logo vemos que apenas a segunda é viável na atual conjuntura.
Mas aqui já surge uma questão importante: onde seriam recrutados os integrantes dessa guarda e quem lhes daria treinamento? Resposta: sua formação seria muito próxima à da Polícia Militar, acrescentando-se que levaria um lapso de tempo considerável, dentro do qual muitos outros crimes podem vir a acontecer. Outras soluções também foram aventadas, como aumentar a iluminação nas ruas, o que é, sem dúvida, necessário, mas não afasta a criminalidade por si só. Delinquentes não são vampiros, mas pessoas violentas, que só podem ser afastadas pelo emprego da força física.
Outra dificuldade de relevo está na reação de setores (minoritários) da comunidade acadêmica à presença da polícia no interior da universidade. Os argumentos desses grupos possuem nuances variadas, mas podem ser resumidos em três fatores interdependentes: 1) a polícia militar é violenta e cria mais insegurança dentro do campus; 2) o objetivo da polícia é perseguir o consumidor recreativo de drogas; 3) a simples presença da polícia fere a autonomia da universidade, que deve ser concebida como um “espaço livre” de organização dos estudantes.
Examinemos cada um desses argumentos. O primeiro deles é, sem dúvida, uma falácia inaceitável vinda de grupos que se outorgam forte autoridade científica no campo das ciências humanas e assumem a tarefa de combater a proliferação de preconceitos dentro da sociedade. Todos sabemos que a quantidade de crimes cometidas por policiais é relevante, mas é importante notar que, ainda assim, trata-se de uma minoria de maus profissionais, que deve ser combatida por meio de órgãos de controle, como uma ouvidoria designada para receber reclamações de alunos, professores e funcionários em casos de irregularidades. Outro ponto importante que não pode passar despercebido é que os policiais são, antes de mais nada, trabalhadores, cujas condições de trabalho são extremamente penosas, incluindo, muitas vezes, a colocação diária da vida em risco. Portanto, não é aceitável que críticos da precarização do trabalho e defensores da emancipação do trabalhador virem as costas para esse importante grupo social, substituindo a ação solidária – que inclui sua incorporação fraternal na comunidade acadêmica por meio da participação na vida cotidiana, nos eventos e festas – por rosnados e demonstrações de antipatia.
Quanto ao segundo ponto, a suposta perseguição aos usuários recreativos de drogas, é necessário esclarecer que o uso de drogas no interior da universidade não é apenas um problema episódico, mas deve ser assumido por toda a comunidade como um mal a ser combatido. Quando o consumo é elevado – mostra a economia mais elementar – o fornecedor corre a atender o usuário e é exatamente isso que verificamos diariamente dentro do campus com a entrada maciça de entorpecentes provenientes de bairros vizinhos de ambas as universidades. Mais ainda, existe uma afinidade “ecológica” (para usar um termo da escola de Chicago) entre os diferentes tipos de crimes praticados nas cercanias e no interior da Cidade Universitária; não raro são as mesmas pessoas que roubam, estupram e traficam. Ora, se assim é, o usuário não pode deixar de ser “perturbado” de algum modo e, logicamente, é preferível que o seja pela polícia e não por criminosos. Vale lembrar que a lei 11.343 considera o consumo e o porte de drogas como infrações de menor potencial ofensivo e que as penalidades previstas variam entre levar um “pito” do juiz e a prestação de serviços comunitários; mas um efeito importante desse dispositivo – frequentemente negligenciado pelos leitores apressados –é que a polícia tem o dever funcional de desfazer o ato criminoso quando o presencia e tomar providências contra o infrator, mesmo que elas sejam brandas. Outro ponto importante a recordar é que para se realizar a prisão em flagrante no caso de tráfico não é necessário mandado judicial, o que afasta boa parte das queixas que alegam arbitrariedade em ações policiais. Caso essas venham a ocorrer, repito, deve haver um órgão competente para delas tomar conhecimento e, se for o caso, punir os responsáveis.
Por fim, a questão da autonomia universitária. A dificuldade nesse tema reside no conteúdo propositadamente vago atribuído a essa expressão e que – devido à sua indefinição – se presta facilmente a todo tipo de manipulação e distorção. Desde 1968 criou-se o mito (no sentido de Georges Sorel em “Reflexões sobre a Violência”: como evocação antes de qualquer análise reflexiva, de uma massa de sentimentos) de que a ocupação de espaços públicos por parte de estudantes, interrompendo as atividades normais neles praticadas, é algo “bom em si” e requisito fundamental para a proliferação de debates democráticos. Diante disso, o adversário natural é aquele que supostamente impede a ocupação: a polícia. Mas examinemos algumas dificuldades suscitadas pelo tema. Primeiramente, em ambientes democráticos a ocupação deve ser empregada como último recurso quando as vias ordinárias estejam bloqueadas e – no caso em tela – o movimento estudantil atual, dominado por partidos políticos que a ele impõem agendas formuladas fora da universidade, tem demonstrado uma gigantesca apatia em suscitar debates frutíferos de onde poderiam nascer reivindicações consistentes por parte dos estudantes. Falo, sobretudo, da reforma das grades disciplinares e de suas implicações (quais temas devem ser incluídos ou modificados no conteúdo das disciplinas? Que tipo de profissionais seriam necessários para fazê-lo? Como melhorar a integração entre universidade e sociedade?). Para compreender por que isso ocorre, passemos ao segundo aspecto da questão: o partidarismo inveterado do movimento estudantil. Basta olharmos a história do movimento comunista desde finais do século XIX para verificar a existência de dois fatores solidários que norteiam sua atuação. O primeiro é a identificação de um inimigo mediato (o capital) e de um inimigo imediato (governo, patrões, instituições, etc..) contra os quais a luta da militância se deve dirigir; como o inimigo mediato não é palpável, sua atuação deve ser combatida enquanto materializada nas ações dos inimigos imediatos. O segundo é a formação de coalizões para levar esse combate a cabo, materializada pelas políticas de “frente ampla”. Voltando para nosso cenário atual, verificamos que a frente ampla do movimento estudantil é sempre formada com os sindicatos de funcionários promotores de greves, identificados como setores avançados e progressistas da comunidade universitária.
Mas esse caráter progressista mesmo deve ser colocado em questão. A reivindicação mais freqüente dos funcionários é o aumento salarial, temperado pela exigência de mudanças nas condições de trabalho. Sem entrar no mérito de cada campanha em particular, mas examinando a maneira como essas demandas são formuladas nos jornais publicados por sindicatos e movimento estudantil verificamos freqüentes distorções e provas de desconhecimento sobre legislação administrativa, lei orçamentária e organização da carreira no serviço público; distorções efetuadas com a finalidade de simplificar questões complexas e concentrar a culpa em algum bode expiatório (reitor, governador, polícia, etc..).
Se o caráter progressista dos blocos de reivindicações formados por estudantes e funcionários pode ser colocado em questão (e, uma vez que toma como palavras de ordem ideias vagas e alheias à realidade, com certeza pode)os atos de ocupação por eles praticados em nome desses blocos também tem sua “bondade em si” colocada em xeque. Muitas vezes as vias ordinárias abertas pela democracia para a discussão e solução dessas questões não são sequer invocadas, devido ao seu desconhecimento ou à simples malícia.
Com isso, vemos que a concepção corrente de autonomia universitária é bastante distorcida e eventuais ações policiais para inibir atos de ocupação (respaldados por decisão judicial, como ocorreu na USP) não podem ser encarados como afronta à liberdade dos alunos, mas, ao contrário, como ações necessárias para o funcionamento normal e democrático da universidade, que pressupõe a atuação de todos os seus órgãos. O interesse em manter a polícia longe da universidade só serve, assim, àqueles que desejam ver os centros produtores de conhecimento como uma cabala, isolados de parte importante da sociedade e de cujo interior só se ouvem palavras ininteligíveis, intercaladas com gritos de “socorro!”. 

Wednesday, September 7, 2011

O Sentido do 7 de setembro

Conforme demonstrou o historiador Mircea Eliade, em seu ensaio clássico "O Sagrado e o profano", uma característica comum a todas as sociedades primitivas é a reprodução periódica de seu ato de fundação, encenado conforme o roteiro de um mito transmitido desde um passado remoto. Desse ritual, em que tomava parte toda a comunidade, dependia a sobrevivência e a prosperidade da mesma, motivo pelo qual ele não podia deixar de acontecer, sob pena de motivar a ira dos deuses.
Empregando uma analogia com as sociedades secularizadas do século XXI, notamos que a quase totalidade dos países do globo terrestre apresentam anualmente algum tipo de espetáculo em memória de seu ato de fundação, especialmente quando este se deu mediante a forma de declaração de independência. A mensagem social difundida por esses eventos é a reafirmação presente dos princípios e ideias sob cuja inspiração se fundaram os países em questão. 
Se pensarmos no caso brasileiro, quais foram os princípios e ideias que formaram nosso país? Segundo o crítico Roberto Schwarz, a marca característica do pensamento que deu origem às nossas instituições é que ele operava conforme um mecanismo de deslocamento que poderia ser designado pela expressão "as ideias fora do lugar". A gênese desse quadro se explica pela adoção de princípios liberais e democráticos europeus em uma sociedade marcada pela escravidão e pelo predomínio das relações de clientela e favorecimento no serviço público, de modo que os princípios que exerceram uma função contestadora e revolucionária em solo europeu aqui não serviram para nada mais que revestir com uma aparência legítima e moderna um conjunto de relações que atravancam o progresso. 
Passados quase dois séculos de nossa independência, parece que continuamos a sofrer os efeitos das ideias fora do lugar: o republicanismo, a democracia, a constituição dirigente e suas as várias formas de garantias se deslocam como pretexto para o agigantamento do estado (e, consequentemente, da corrupção) na mesma medida em que permanecem em grande medida inefetivos na prática. Perplexa diante desse quadro, boa parte da opinião pública e das classes letradas brasileiras jogam a culpa desse estado de coisas na classe política, esquecendo que ele resulta de um caldo cultural que provém mais de nossa formação como país do que de um grupo de pessoas que nos governa de maneira predatória, corrupta e inadequada. Dependendo cada vez mais do estado para impulsionar seu padrão de vida (haja vista a quantidade de pessoas empregadas, ou que almeja um emprego, no serviço público), o brasileiro médio se rebela hoje contra a corrupção como um cliente que se queixa de um serviço mal prestado e não como o produtor justamente indignado contra aquele que tolhe os frutos de seu trabalho. Daí a resposta para a pergunta tão difundida: "por que no Brasil ninguém se rebela contra a corrupção?" 
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que os males que experimentamos hoje em matéria de política são ainda os ecos de nossa ambígua formação nacional, que agrupou sob uma imagem moderna os problemas não resolvidos de nosso passado clientelista. Em face disso, cabe a pergunta: em nome do que vale a pena celebrarmos o 7 de setembro? 

Thursday, August 18, 2011

A Pedagogia de Haddad


Para quem esperava uma discussão sobre os rumos da educação no Brasil, o debate dos alunos do Largo São Francisco com o ministro Fernando Haddad, realizado na última terça feira, deixou muito a desejar. O convidado claramente esperava uma chuva de louvores, mesclados com poucos ataques frontais desferidos por frações radicais do movimento estudantil, para os quais ele já dispõe de respostas prontas; mas não esperava ter de prestar contas sobre assuntos vitais, como a preocupante expansão do analfabetismo funcional entre a população escolarizada de nosso país.
Pensando nessa questão, elaborei uma pergunta partindo do fato evidente – e louvável – de que os governos Lula e Dilma vem aumentando substancialmente os investimentos em educação básica e superior. Todavia, meu questionamento se concentrou na maneira como esses recursos são atualmente empregados: basicamente no incremento da infraestrutura e na contratação de pessoal, assim como na inclusão de disciplinas como filosofia e sociologia no currículo do ensino médio. Guardando esses dados, voltemos ao problema do analfabetismo funcional, indagando sobre suas causas; o analfabeto funcional é aquele que sabe ler, mas não entende o que lê, não sabe interpretar um texto. As causas dessa deficiência podem ser agrupadas sob três categorias: falta de raciocínio lógico, falta de domínio da língua e pobreza de recursos imaginativos. Como combater esses três fatores? A resposta é simples: incluir (ou melhorar) disciplinas de currículo básico que desenvolvam essas qualidades. Para o raciocínio lógico, um curso de lógica elementar (como havia no currículo até os anos 40) e não essa matemática altamente sofisticada que se ensina no colégio nem, tampouco, cursos de sociologia e filosofia, cujos arcabouços conceituais são tão complexos e controversos que nem mesmo um grande especialista consegue defini-los com segurança; para o domínio da língua, uma maior valorização da gramática normativa, talvez com a adoção de manuais clássicos, que sempre obtiveram ótimos resultados; por fim, para o incremento de recursos imaginativos, um maior incentivo à leitura de clássicos da literatura brasileira e portuguesa (hoje em dia lê-se muito pouco entre os jovens e literatura de quinta categoria, ninguém mais lê Camões, Antonio Vieira, Camilo Castelo Branco, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, etc...). Em síntese, questionei o ministro sobre o por que de nada disso estar sendo feito.
Espantado com o questionamento, ele tergiversou, num primeiro momento reconheceu a qualidade da pergunta, mas, logo em seguida, disse que tratava-se de uma questão financeira, que estava aumentando os investimentos em ensino básico e que a escolaridade brasileira já é melhor que a da Argentina (escolaridade meramente quantitativa, pois basta comparar o domínio da língua e da literatura de um jovem argentino com um brasileiro para constatar nossa vergonhosa desvantagem). Disse também que eu estava separando ensino primário e ensino superior, o que não fazia sentido, pois deve-se ter uma visão integrada dos dois (coisa estranha quando todos sabemos que há um abismo de distância entre os conteúdos de ensino médio e de ensino superior, não raro sendo aqueles totalmente descartados pelos alunos quando entram na universidade).
Depois disso, Haddad chamou a atenção para a importância das lutas estudantis, dizendo que devemos cobrar cada vez mais melhorias na qualidade do ensino. Mas, ora bolas, se nem ele mesmo sabe qual é o conteúdo dessas mudanças, o que é um ensino de qualidade, quais os planos de ação que devem ser empregados para atingir essa finalidade, qual é o sentido dessa luta? Por tudo que foi dito, a única resposta possível é: exigir mais recursos para a educação. Realizou-se, portanto, aquilo que temíamos e criticávamos nos governos anteriores: o MEC se tornou uma sucursal do ministério do planejamento

Wednesday, August 3, 2011

Três formas de controle da corrupção

A iniciativa do governo Dilma de combater a corrupção ex officio - diferentemente da proteção paternal que seu antecessor dispensava a todo tipo de irregularidade - demonstra, pelo menos à primeira vista, uma maior seriedade no trato da coisa pública. Contudo, se aprofundarmos nossas reflexões sobre as diversas formas de combate à corrupção, veremos que muito pouco mudou em relação aos últimos oito anos. Para sustentar essa afirmativa, proponho uma classificação tripartite das formas de controle da corrupção, estas podem ser compreendidas como 1) administrativas (quando o executivo fiscaliza a si próprio), 2) judiciárias (quando as procuradorias exercem fiscalização sobre a administração) e 3) políticas (quando o legislativo, por meio de CPIs, fiscaliza os outros poderes ou a si mesmo). Dessas três formas, a mais racional (no sentido weberiano) parece ser a judiciária, visto que seus agentes são - pelo menos em tese - notórios conhecedores do ordenamento jurídico e a menos racional seria a política (movida ao sabor das ondas da política cotidiana). Mas podemos também constatar que a simples eliminação da forma de controle político (o famoso "abafa" das CPIs) acarreta uma série de consequencias funestas para o sistema político como um todo, pois o poder de pressão do executivo sobre o judiciário - especialmente no Brasil de hoje em dia - é real e incontestável, na mesma medida em que o próprio executivo pode ser bastante seletivo ao apurar suas próprias irregularidades. Assim, a decisão de sepultar toda e qualquer CPI proposta pela oposição demonstra que o governo não admite senão suas próprias iniciativas para combater a corrupção, algo que só poderia ser feito a contento num governo de anjos, o que, aparentemente, não é o caso. É necessário, portanto, que a imprensa e setores organizados da sociedade pressionem o legislativo para que exerça uma de suas funções clássicas e pratique o controle político da corrupção com ou sem autorização do palácio do planalto.

Monday, July 25, 2011

Espaço público e patrimônio histórico

Um aspecto comum à grande maioria das cidades brasileiras (bastante presente nas duas em que já residi) é o abandono dos edifícios históricos, frequentemente entregues à especulação imobiliária ou abandonados a grafiteiros e pessoas afetadas por incontinência urinária. Esse simples fato pode parecer uma questão trivial, meramente estética e acessória em relação a outros problemas urbanos mais graves, como a precariedade de moradias, a falta de saneamento básico e de acessibilidade; todavia, sustento que a negligência para com o patrimônio histórico é uma mazela à altura destas últimas, pois contribui de maneira decisiva para o eclipse da noção de espaço público, inviabilizando a criação de vínculos entre as pessoas entre si e com o espaço comum que habitam. É importante ressaltar que os inúmeros e festejados programas de revitalização urbana, dentre os quais a reforma da Estação da Luz, em São Paulo, foi marco importante, simplesmente não cumprem essa função pública, limitando-se a exibir uma roupagem nova, mas não eliminando os males evidentes no entorno: haja vista a persistência - e o crescimento - da cracolândia. Uma cidade sem história é uma cidade sem alma, com a qual seus habitantes não tem vínculos e - por isso - admitem que qualquer barbaridade motivada pelo lucro ou por conveniência política seja cometida. Não é à toa que no romance 1984, de George Orwell, o regime totalitário da Oceania tinha eliminado ou deixado em ruínas todos os edifícios construídos antes da revolução. De tudo o que foi dito, fica claro que uma revalorização do patrimônio histórico urbanístico - com a conscientização de todos sobre seu significado - é imperativa nos dias de hoje, sendo pilar indispensável da reforma educacional de que nosso país necessita.

Monday, July 18, 2011

A Prefeitura e os camelôs

Atolada em escândalos de corrupção e desacreditada pela maior parte dos munícipes, a prefeitura de Campinas está lançando uma série de campanhas para "moralizar" a administração pública, dentre as quais se inclui uma maior fiscalização contra a pirataria e a possível transferência do camelodromo para a estação Fepasa. Trata-se, logicamente, de mais uma tentativa para desviar a atenção dos eleitores dos reais problemas e passar uma imagem de austeridade às custas da atividade dos menos favorecidos. Contudo, tais medidas abrem espaço para reflexões importantes a respeito do comércio ilegal e do empreendedorismo como um todo: sabendo que boa parte dos produtos comercializados por camelôs é de procedência ilegal e, consequentemente, financia o crime organizado, como combater esse lado nocivo da profissão sem retirar de um expressivo conjunto de famílias seus meios de sustento? Penso que a solução é mais simples do que parece e se resume, simplesmente, em reduzir drasticamente nossa hedionda carga tributária e abrir espaço para que aqueles que se empregam no comércio ilegal montem pequenas empresas e coloquem em prática suas habilidades de empreendedores - injustamente cerceadas por um sistema tributário e jurídico que não dá outra saída senão a inadimplência -, gerando renda para si mesmos, dinamizando a economia e - importante - reduzindo a clientela do crime organizado. Se isso não for feito, toda medida tomada para dificultar a vida dos camelôs não passará de mera demagogia ou de reforma urbana no sistema (falido) inspirado em Haussmann e Pereira Passos.

Wednesday, July 13, 2011

O Exemplo de Itamar

Itamar Franco - que nos deixou há pouco mais de uma semana - deve servir de exemplo para todos aqueles que pensam em reconstruir (ou construir do zero?) a vida política de nosso país. Desde o início de sua carreira esteve firmemente comprometido com a democracia; ao contrário dos políticos de hoje em dia, nunca teve medo de ficar na oposição, cumprindo bravamente esse papel desde a ditadura militar. No decorrer de sua longa carreira, foram pouquíssimos os momentos em que esteve ao lado do poder e em nenhuma dessas situações foi conivente com os desmandos praticados. Eleito vice de Collor em 1989, rompeu com o rajá das Alagoas diante de seu poupulismo barato e de suas práticas nada ortodoxas de exercício do poder; ao assumir a presidência, no final de 1992, Itamar forneceu uma série de bons exemplos que nos devem servir de norte para o estabelecimento de princípios para a reforma da vida política: 1) com o auxílio da sóbria liderança do senador Pedro Simon, estabeleceu uma relação republicana com o congresso nacional, tendo sido o presidente que menos se rendeu ao fisiologismo partidário na nova república. 2) valendo-se da liberdade fornecida pelo equilíbrio de poderes, abriu a possibilidade de que um grupo de técnicos competentes, sob a liderança do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, empreendesse o mais bem sucedido plano econômico da nova república, livrando o país de uma inflação que beirava índices similares aos piores da república de Weimar. E, finalmente, Itamar deixou a presidência pobre e morreu em condições patrimoniais muito inferiores às ostentadas por vereadores que integram o atual condomínio de poder. Em 2010, já idoso e doente, foi o único senador que teve a coragem de enfrentar a sanha de poder do palácio do planalto, que continua se empenhando em anular qualquer possibilidade de funcionamento autônomo do legislativo. Sua morte nos deixa um imenso vácuo político, mas também um grande exemplo. Espelhemo-nos em Itamar Franco!

Saturday, July 9, 2011

O que é um Estado laico?

Neste post não pretendo expor nenhuma ideia pronta, mas apenas expressar uma dúvida decorrente de meus estudos de história e ciência política e pedir aos leitores que me ajudem a enriquecer minhas reflexões: em que consiste exatamente um Estado laico? Respondendo de maneira superficial, poderíamos dizer que um Estado laico é aquele em que política e religião (pelo menos em suas expressões institucionais) não se misturam. Inegavelmente temos hoje em dia - pelo menos no mundo ocidental - sistemas políticos que funcionam com base nesse princípio; caso esteja muito enganado, não existe nenhum Estado nacional ocidental - salvo o Vaticano - regido pelo direito canônico. Uma resposta mais elaborada iria no sentido de traçar uma linha demarcatória clara entre a lógica da política e a lógica da religião, sendo que uma não poderia interferir na outra. Minha dúvida incide precisamente sobre esse ponto: como demarcar essa linha? Toda decisão política - inclusive o processo que leva à elaboração e promulgação de uma norma jurídica - é movida por uma grande variedade de vetores sociológicos, psicológicos, doutrinários e... religiosos. Se isso é verdade, torna-se impossível afastar por completo o elemento religioso da política oficial, haja vista a presença de bancadas religiosas no congresso e a recorrência de argumentos religiosos para defender ou atacar determinados projetos de lei, mas nem por isso podemos dizer que o Estado deixou de ser laico e que voltamos à idade média. Minha dúvida, portanto, permanece: em que sentido devemos entender, hoje, o Estado laico?

Friday, June 24, 2011

O Princípio Responsabilidade

Na faculdade de direito, quando cursamos uma disciplina chamada "direitos fundamentais", salta à vista o gritante contraste entre a pletora de direitos e garantias individuais que vem se avolumando desde a revolução francesa em inúmeras constituições, tratados, declarações e a inefetividade - sociologicamente constatada - dos mesmos frente aos abusos que continuam a ser cometidos contra a dignidade individual. Esse problema fundamental para nossa futura atividade como juristas é sempre deixado em aberto, sendo que não vejo nenhuma discussão que desça do céu estrelado das abstrações e busque enfrentá-lo de maneira sistemática a partir dos dados concretos com os quais nos deparamos na vida cotidiana. Correndo o risco de extrapolar de minhas competências de simples estudante, venho aqui propor a abertura de uma reflexão sobre os direitos fundamentais a partir de uma via pouco explorada: a de sua correlação com a ideia de responsabilidade. Para tanto, chamo em meu auxílio um trecho da obra clássica do cientista político Bertrand de Jouvenel, O Poder (história natural de seu crescimento), na qual o autor discorre sobre a genealogia da ideia de liberdade (o primeiro e mais importante dos direitos fundamentais). Contrariando a tradição inatista abraçada por nossos manuais - cujos mentores são Rousseau e Kant - Jouvenel constrói sua reflexão a partir do método genealógico desenvolvido por Nietzsche, para quem a liberdade é não um atributo inato da personalidade, mas uma construção histórica de milhares de anos a partir de uma situação primitiva de opressão e equalização dos indivíduos denominada "eticidade dos costumes", conjunto de preceitos salvaguardados por violentas sanções e cuja única razão de ser é o asseguramento da coesão coletiva (algo próximo à "solidariedade mecânica" de Durkheim). Sob essa perspectiva, o sinal histórico do surgimento da liberdade seria a possibilidade de um conjunto de indivíduos defender com suas próprias forças uma esfera individual de ação sobre a qual a coletividade não mais teria direito: reduz-se, assim, a força da eticidade dos costumes em prol do surgimento de indivíduos livres e capazes de defender sua liberdade e brota, pela primeira vez, a esfera dos direitos subjetivos. A contrapartida necessária dessa liberdade é o surgimento da responsabilidade individual, pois o indivíduo é livre a um só tempo para defender e vincular seu patrimônio e seu próprio corpo em um compromisso e tem orgulho em poder fazê-lo; como dizia Nietzsche, o indivíduo soberano é aquele a quem "é permitido fazer promessas". Do ponto de vista social, a essa qualidade moral corresponde um conjunto de virtudes que inspiram profundo respeito coletivo por essa classe de homens e - por seu turno - a obrigação de que estes se portem de maneira digna em relação aos que não se encontram nesse patamar. O processo histórico de decadência dessa elite "livre" tem como cerne o fortalecimento do poder do Estado, que se dá concomitantemente à perda das qualidades morais dos homens livres, substituídos por uma arrogante plutocracia, que - por trás do exercício de prerrogativas de cargos públicos - se furta de qualquer tipo de responsabilidade e leva a seu reboque uma classe cada vez mais avolumada de dependentes pobres, facilmente manipulados a partir dos roncos de seus estômagos e impotentes para reagir frente ao abuso de seus dirigentes. Em poucas palavras, o fortalecimento do poder do Estado é inversamente proporcional à efetividade das liberdades individuais. Mas, poderiam objetar, como aplicar uma reflexão feita tendo como cenário o mundo antigo (especialmente a república romana) à atual problemática dos direitos fundamentais? Penso que o estudo genealógico da formação e do desaparecimento das liberdades antigas nos fornecem importantes lições para compreendermos a situação desse começo de século XXI: a primeira delas é a inefetividade do aumento do poder do Estado como assegurador das liberdades individuais; de pouco vale termos um imenso conjunto de diplomas jurídicos contendo garantias se não temos indivíduos fortes e conscientes para defendê-las. Mas como produzir indivíduos fortes em uma sociedade democrática, sem termos que recorrer à anacrônica ideia de uma aristocracia? Ressalta aqui a importância de um sistema de educação básica que fortaleça de maneira enfática a noção de responsabilidade individual e aponte para a necessidade de se corrigir o descompasso atualmente vigente entre demandas coletivas e disponibilidade para se dedicar ao conjunto social. Parece mesmo que a cada grito de parcela da sociedade por mais direitos verificamos seja um enfraquecimento do corpo social (cada vez mais vulnerável ao surgimento de aberrações como gangues armadas) seja a inefetividade do Estado em assegurar o cumprimento de condições mínimas para a fruição desses mesmos direitos. Ora, se o Estado não é capaz nem mesmo de assegurar a integridade física de seus cidadãos (no Brasil morrem cerca de 50 mil pessoas por ano, vítimas de homicídios), é ele capaz de fornecer garantias mais substanciais para cada um dos grupos sem obliterar a possibilidade de autodeterminação de todos? Como dizia o jurista Rudolph von Jhering, o pilar sobre o qual se sustenta o direito é a luta, e o princípio dessa luta é a responsabilidade, que se traduz tanto na tutela dos direitos individuais quanto na virtude cívica em relação ao todo social. Resgatemos o princípio responsabilidade.

Monday, June 20, 2011

Sobre a descriminalização da maconha

Mais uma vez as "elites pensantes" de nosso país tornam solenemente as costas para a opinião de ampla maioria da população (segundo o datafolha, 74% dos brasileiros são contrários à descriminalização da maconha) e buscam impor - através do intenso controle que exercem sobre os meios de comunicação - uma pretensa solução para a galopante expansão do uso de drogas no Brasil (estatística na qual andamos na contramão da maioria dos países latinoamericanos, que reduzem anualmente o número de usuários): deixar de tratar o usuário (por enquanto, de maconha, notória porta de entrada para todos os tipos de drogas pesadas) como criminoso e transferir o problema da competência da polícia para a saúde pública. Paralelamente, afirma nossa inteliggentsia, reforçar-se-ia o combate ao tráfico, tanto por meio do policiamento de fronteiras como pela promulgação de normas jurídicas mais duras para punir os traficantes, no estilo da lei de crimes hediondos atualmente em vigor. Seria de bom alvitre levantar algumas dificuldades das quais padece este plano de ação, por nós sumariamente exposto: a primeira delas é de caráter sociológico e se resume ao fato evidente de que a descriminalização do uso resultaria instantaneamente num aumento do mesmo, dado que encorajaria os atuais consumidores a intensificarem o consumo ao mesmo tempo em que afastaria a inibição de expressiva parte da população que atualmente deixa de fazê-lo por simples fidelidade à lei (sim, meus amigos, isso ainda existe); um exemplo recente pode nos ajudar a compreender melhor a situação: consultado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a dispersão de uma "roda de fumo" numa praça pública por parte da autoridade policial, um conhecido magistrado de Campinas afirmou que a polícia não tem competência para fazê-lo, pois a atividade dos "fumantes" não ofende nenhum bem jurídico. Pensemos, portanto, no grau de salubridade de nosso espaço público caso um entendimento como esse venha a ser adotado, não é preciso muita imaginação para projetar a futura presença de mini-cracolândias em territórios bem maiores do que os atuais. A segunda dificuldade reside no evidente afogamento de nosso sistema público de saúde, que ainda se vê às voltas com doenças típicas do terceiro mundo, como a malária, a cólera e o sarampo. Não obstante isso tudo, o parco orçamento destinado à saúde pública seria realocado para cuidar de pessoas que tomaram uma infeliz decisão pessoal, em detrimento das verdadeiras vítimas da miséria de nosso país (como aqueles desprovidos de saneamento básico). O terceiro ponto pode ser encarado como o reflexo econômico do fato social descrito no primeiro: um aumento na demanda fatalmente produzirá um aumento na oferta e nossa polícia, nossas forças armadas e - com maior razão - nosso sistema judiciário, que já não possuem condições materiais para dar combate ao tráfico internacional, sofrerão maiores dificuldades do que no presente momento. Diante desse ponto, ainda no campo econômico, cabe uma pergunta: quem produz, comercializa e lucra com o tráfico de drogas e armas em nosso país? Resposta óbvia: as FARCS colombianas, que terão suas receitas e seus arsenais fartamente alimentados caso se vejam diante da oportunidade de expandir seu honrado comércio. Sendo assim, o argumento de que a legalização do consumo diminuiria a violência cai estrondosamente por terra, pois esta aumentaria tanto no âmbito urbano quanto no âmbito internacional. Para encerrar esse longo post, levanto uma reflexão que gostaria de desenvolver melhor em outra ocasião: a descriminalização do uso de drogas vai na mesma direção de uma tendência clara de nosso atual universo jurídico que busca expandir o rol de direitos e garantias sem a necessária contrapartida de responsabilidades individuais (entenda-se: garantias mais nominais que efetivas). Esse fato é de uma clareza meridiana no direito penal, campo em que os doutrinadores buscam abrir cada vez mais portas para a impunidade apontando para o caráter inegavelmente precário de nosso sistema carcerário, cometendo, assim, aquela falácia argumentativa à qual os lógicos denominam "erro categorial", mas que toca em cordas profundas de nossa sensibilidade. Devemos, com isso, ficar atentos, para que essa nociva reforma não seja feita - alheia ao controle democrático - pelas mãos do Supremo Tribunal Federal, órgão sensível aos apelos de nossa "elite pensante", mas não àquilo que o povo nas ruas efetivamente pensa e defende.

Monday, April 11, 2011

A Farsa do desarmamento

A tragédia ocorrida na última semana em uma escola do Rio de Janeiro criou a ocasião para que o governo federal desengavetasse um projeto que estava momentaneamente afastado devido a uma escolha soberana da população brasileira: o desarmamento do cidadão comum, rejeitado no referendo de 2005 por maioria significativa do eleitorado. Contudo, diante dos eventos da escola no Realengo, eis que surge mais uma vez o discurso: "precisamos controlar a venda de armas e estimular aqueles que já as possuem a doá-las para destruição".
Diante dessa afirmativa, cabe uma pergunta óbvia: as armas e munições utilizadas pelo crime organizado e por maníacos de todo tipo são obtidas legalmente e com porte autorizado mediante o complexo procedimento previsto em lei ou pela via do contrabando? A resposta é por demais óbvia.
Contudo, se aprofundarmos o debate, surge outra questão de maior complexidade: por que o governo de Lula e de sua ajudante de ordens tem tamanho interesse em desarmar o cidadão comum, que obteve seu porte de armas pelas vias legais? A questão é complexa, mas se a empreitada for bem sucedida, os resultados não são difíceis de prever: teremos o poder, mais do que nunca, concentrado nas mãos do Estado e a população na completa dependência de uma polícia ineficiente para executar uma tarefa que - na maior parte da história da civilização - coube ao indivíduo enquanto particular: a defesa imediata de sua vida e de seu patrimônio. É fato público e notório que nas grandes civilizações da história (desde a Grécia antiga, passando por Roma até o atual império americano) os indivíduos particulares foram treinados para portar armas no serviço militar obrigatório e, ao se desmobilizarem, continuavam na posse de armas em suas casas, sem que isso resultasse em aumento da violência, muito pelo contrário. Basta verificar que nos estados americanos em que a população é mais armada (legalmente, claro) os índices de criminalidade são baixíssimos.
No caso brasileiro, uma população que não exerce esse direito democrático básico - inclusive como contrapartida à concentração natural de poder nas mãos do Estado moderno - é cada vez mais reduzida à impotência, à covardia e à incapacidade de autodefesa diante de agressões à luz do dia, como vem ocorrendo diariamente em nossas grandes cidades. Diante do quadro atual, a virtude da coragem vai, irremediavelmente, se concentrando nas mãos de uns poucos criminosos, que, sozinhos, conseguem tornar a grande maioria da população sua refem.

Friday, March 4, 2011

O Santo Graal da reforma política

Uma das mais freqüentes – e postergadas – promessas da república democrática iniciada em 1985 é a realização de uma ampla reforma política que possibilite uma melhor organização de nosso fragmentário sistema de partidos, a transposição do déficit de representatividade nas casas legislativas e o controle público dos gastos em campanha; espera-se que, uma vez atendido este conjunto de demandas, ocorrerá naturalmente um revigoramento do embate político, condição indispensável para a efetividade de todo regime democrático. Diante da real possibilidade de um acordo parlamentar que realize essas aspirações, apresentamos a seguinte indagação: em que medida a reforma política está vinculada ao ressurgimento (ou, no caso brasileiro, para o surgimento) do embate entre valores que perfaz a arena política de uma democracia?
Como justificação para este vínculo encontramos a constatação (empiricamente demonstrada por uma série de estudos, como os “Modelos de Partido”, de Panebianco) de que alterações em um sistema partidário só são viáveis onde existam partidos fortes e com um elevado nível de organização institucional. Moral: o aumento do caráter fragmentário do sistema caminha de maneira inversamente proporcional à sua abertura a reformas. É precisamente este o ponto que ocupará posição de destaque na recém instalada comissão parlamentar de reforma política e que poderá resultar em um grande acordo entre os principais partidos da casa (PT, PMDB, PSDB e DEM), situação que abriria espaço para rápida aprovação da reforma política em plenário pela via da votação simbólica.
Contudo, dentre estes partidos, o único que ostenta um projeto claro é o PT, que busca, com real perigo para as instituições, reduzir as distâncias entre funções partidárias e cargos públicos por meio da progressiva ocupação do Estado por seus quadros. Como corolário desse projeto temos a tese, publicamente defendida, de que um aumento nas funções do Estado é condição indispensável para a eliminação da miséria e a diminuição da concentração de renda. Retomando um argumento exposto em post recente (http://florenceunicamp.blogspot.com/2011/02/o-papel-da-oposicao.html), questiono se a implementação da reforma política insuflará nos partidos de oposição a força interna necessária para defender publicamente outras vias para a solução destas questões históricas, como uma maior valorização da iniciativa privada sem prejuízo para o atendimento social dos mais pobres. Como constatou Jürgen Habermas (“O Discurso Filosófico da Modernidade”), a peculiaridade do mundo pós-revolução francesa é o embate entre valores em uma vigorosa esfera pública, orquestrado por um conjunto de instituições democráticas que garanta a continuidade do processo sem a imposição definitiva de qualquer um desses valores. Nesse contexto, os partidos políticos são agentes privilegiados no combate democrático, mas, é preciso frisar, seu arcabouço organizativo não se confunde com os valores que ostenta, nem, tampouco, os compromissos que contrai podem solapar em definitivo os programas com os quais se apresentam ao público.
Aqui as reflexões do cientista político e do filósofo praticamente se confundem, pois a defesa normativa de uma tendência histórica não compete àquele, mas a este, que busca enxergar por debaixo de pesados esqueletos institucionais um determinado conteúdo axiológico. Chamando a atenção para este conflito de competências verificamos que, no caso da reforma política, uma aposta unilateral na efetividade das instituições pode conduzir, num determinado momento histórico, à vitória totalitária do conjunto axiológico que melhor se articula: no caso, o da estatolatria. 

Friday, February 25, 2011

Kadafi e sua bíblia

Um dos eventos simbólicos mais significativos dos protestos que se multiplicam pela Líbia nas últimas semanas foi a queima em massa de exemplares do "Livro Verde", panfleto concebido e publicado pelo ditador Muammar Kadafi em 1975 - momento de consolidação de seu regime - e que tinha como objetivo expor em linguagem acessível as linhas mestras do sistema de governo sui generis que estava em vias de ser instalado em seu país.
Pela leitura do texto (disponível em português no site: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/livroverde.pdf) salta à vista a influência de bandeiras defendidas pelo radicalismo político soixante-huitard (que tinha como uma de suas reivindicações a emancipação completa do "terceiro mundo"), temperado com elementos de primitivismo tribal que perfazem um conjunto argumentativo que regurgita de falácias de todos os gêneros (todas redutíveis, em última análise, a argumentos ad populum), mas que, possivelmente, soou como música para os ouvidos daqueles que conheceram as dificuldades de se conciliar uma sociedade fundada sobre princípios de organização milenarmente vigentes (a família, o clã, a tribo, a religião) com a indústria e a organização política introduzidos pelo colonizador ocidental.
A doutrina defendida no panfleto é denominada "terceira teoria universal" e tem como substrato a organização de uma democracia direta, isto é, uma forma de governo na qual o povo (conceito que o autor se furta de delimitar) seja o gestor direto de todos os seus interesses sem a intervenção das "máquinas de governar" unilaterais, os partidos políticos que lutavam pelo controle da política parlamentar. Segundo o argumento de Kadafi, os partidos representam automaticamente interesses parciais e a chamada democracia parlamentar ocidental nada mais é que uma ditadura disfarçada. A partir dessa interpretação flagrantemente sumária e unilateral dos fatos, o autor não tem pudores em efetuar um salto mortal para o reino dos valores, bradando (com pontos de exclamação) que o povo tem o direito de assumir seu próprio governo, criando uma nova "máquina de governar" não contaminada por interesses unilaterais. A organização dessa "máquina" seria feita a partir de congressos populares e comitês populares, nos quais seriam decididas diretamente pelo "povo" todas as questões atinentes ao governo. Contra a possível objeção de que a democracia parlamentar se ancora em garantias constitucionais, o ditador replica que estas não passam de formulações arbitrárias, ao passo que seu sistema se ancora na "lei natural". Sobre o fato de que esta - assim como aquela - também necessite de intérpretes não é dito uma palavra.
No tocante à organização econômica, Kadafi propõe a implantação de uma forma de socialismo infensa à divisão do trabalho e que busca se aproveitar das máquinas para alimentar uma economia natural, fundada na família e na tribo, na qual não existem trabalhadores assalariados nem se persegue o lucro e onde as máquinas criam a base para uma sociedade inteiramente produtiva, apta a suprir todas as necessidades materiais dos indivíduos. Ao contrário dos clássicos do marxismo, Kadafi defende o fortalecimento das comunidades naturais, que se desdobram em uma solução de continuidade da família, passando pela tribo, até a nação e cujas funções (incluindo a vingança de sangue) precisam ser preservadas  como unica forma eficiente de coesão social.
O resultado da implantação - regada, é preciso que se diga, por bilhões de petrodólares nos últimos quarenta anos - das políticas do "Livro Verde" está caindo hoje por terra e nos obriga a um conjunto de reflexões a respeito da função da organização interna dos partidos políticos e das mediações que obrigatoriamente se estabelecem entre os interesses parciais que se defrontam na sociedade civil e a formação de um consenso parlamentar capaz de gerar uma situação de governabilidade. Como bem observaram Robert Michels (Os Partidos Políticos, Lisboa, Antígona, 2001) e Angelo Panebianco (Modelos de Partido, São Paulo, Martins Fontes, 2002), os partidos não são expressões imediatas dos interesses sociais aos quais se vinculam, devendo seu aspecto organizacional ser levado em conta como pivô de uma maior ou menor transparência democrática; há, portanto, partidos que se organizam de maneira a proporcionar maiores condições de participação popular do que outros, mas nenhum sistema político na modernidade (seja uni ou multipartidário) pode prescindir desse aspecto organizacional (muito menos os chamados "congressos populares"), de modo que concluir que a democracia partidária é essencialmente ditatorial por conta do desvio que provoca na "vontade popular" é promover uma generalização apressada de casos pontuais (como o golpe nazista de 1933) para toda uma história de relevantes construções democráticas (como o parlamentarismo britânico).
Espera-se que das cinzas do "Livro Verde" brote um solo fértil para o pensamento e a instauração de novas e plurais formas de organização partidária neste deserto em que o petróleo tem servido como combustível para o sectarismo político.

Sunday, February 20, 2011

Nota sobre o ativismo judiciário

Ao discursarem na abertura do ano legislativo de 2011, os presidentes da câmara federal e do senado da república chamaram a atenção para a necessidade de aliviar o judiciário de uma série de demandas que, segundo eles, pertenceriam ao campo da política e não do direito. Dito de outra forma, aquilo que se convencionou chamar de ativismo judiciário parece estar extrapolando os limites da ação especificamente jurídica, dificultando que prestações propriamente jurisdicionais sejam oferecidas à população e furtando à arena da política um quinhão relevante de suas disputas internas; basta pensar nas decisões sobre a fidelidade partidária.
Tentando uma primeira aproximação, poderíamos dizer que o ativismo judiciário designa o desrespeito, por parte dos órgãos judicantes, do princípio clássico da separação de poderes, proposto por Montesquieu em sua obra, "O Espírito das Leis". Esta definição, todavia, apenas tangencia o problema, uma vez que, como todos os manuais de direito constitucional fazem questão de lembrar, esta teoria teve origem na má compreensão do autor, que extraiu, de maneira equivocada, do sistema parlamentar inglês as regras gerais para a formulá-la. A preocupação de Montesquieu era, fundamentalmente, impor o controle do executivo (fortaleza da razão de Estado) pelo legislativo (órgão representativo por excelência) e neutralizar o judiciário (naquela época um terreno de arrivistas e pseudo-eruditos). Contemporaneamente, mais correto seria dizer que cada um dos três poderes exerce as três funções próprias do Estado: legislar, executar e julgar. Mas, se isso é verdade, como imputar a um deles uma invasão ilegítima da esfera de competência exclusiva do outro?
O fundamento para responder a essa pergunta foi fornecido por Max Weber, que, em uma conferência denominada "A Política como Vocação" (Lisboa, Editorial Presença) definiu a modernidade como a era da  racionalização. Com esta formulação, buscava ele formular um princípio explicativo para possibilitar à sociologia inteligir a formulação de lógicas próprias e infensas a ingerências externas para cada campo do agir humano na modernidade (política, direito, economia, arte, etc): enquanto à política compete a luta pela implantação social de valores ao direito caberia zelar (a partir de sua interna) - por meio da administração do aparato coercitivo estatal - pelo cumprimento dos valores estabelecidos por aquela; aos ordenamentos jurídicos que cumprem essa função denomina Weber de "racionalizados". Isto não significa que no direito não intervenham motivos de ação políticos, mas que, na modernidade, estes submergem frente à organização sui generis do sistema jurídico. Levando este princípio explicativo para a filosofia do direito, Hans Kelsen se valeu do insight weberiano para formular seu projeto mais ambicioso, a "Teoria Pura do Direito", que advogava a ideia de que, para ser compreendido cientificamente, o direito deveria ser abordado por sua lógica própria, de uma ordem de coerção organizada estaticamente como uma hierarquia normativa e que, dinamicamente, se articulava pelo princípio da imputação, a atribuição de consequencias jurídicas a situações de fato.  
Talvez a maior contribuição de Kelsen tenha sido a vigorosa defesa da especificidade do direito frente à política; ele não negava que os juízes, muitas vezes (talvez na maior parte delas) decidem movidos por ideias políticas, mas afirmava que, uma vez incorporado ao sistema jurídico, esse conteúdo se reporta ao sistema de atribuição de competências e à estrutura normativa próprios do direito. É precisamente isso que está em questão quando falamos em ativismo judiciário: a invasão desestruturadora do campo do direito pela lógica própria da política, que, por definição, opera através da luta pela imposição social de valores. Cabe então a pergunta: seria o direito um mecanismo apto à imposição social de novos valores ou simplesmente um meio para fazer valer aqueles que já estão sedimentados? No entender de um liberal do início do século XX, como Hobhouse, a pergunta não ofereceria dificuldades, mas, com o surgimento de novas funções constitucionais, como a realização de direitos fundamentais a partir de um programa de reforma social e desenvolvimento nacional (tema formulado nos anos 70 pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho em sua obra "Direito Constitucional e Teoria da Constituição") a questão ganha novos contornos, pois a política se encastelou no centro nervoso dos novos sistemas jurídicos nacionais e dos projetos de ordem jurídica internacional. Com esta nova configuração, cria-se o risco de que os tribunais (desde as primeiras intâncias até as cortes internacionais) percam de vista o gigantesco acúmulo de conhecimento que se produziu no campo específico do direito em nome da exigência imediata de "fazer justiça". É sob o honroso manto dessa expressão que os maiores defensores do ativismo judiciário se justificam perante todo o tipo de críticas; mas o projeto de se fazer justiça por essa via esbarra - especialmente em países como o Brasil - na dificuldade estrutural em que o judiciário se encontra para resolver todos os tipos de caso, mesmo os de menor complexidade. De outra parte, desde o momento em que o poder legislativo fica refém da desmedida emissão de medidas provisórias pelo executivo, o judiciário se vê forçado a assumir parte das competências que originariamente seriam de titularidade do parlamento. 
O ativismo parece, portanto, entrar em conflito consigo próprio ao não conseguir sedimentar no tecido social os valores que só a política poderia impor (valendo-se de meios democráticos, de preferência) e ao tropeçar em seu próprio pressuposto: o de que,  parafraseando Gottfried Keller, "tudo é política, até mesmo nos tribunais". 

Thursday, February 17, 2011

O centenário de "Liberalismo"

Em 1911, sob o alento da aliança entre liberais e trade-unionistas, que viria a resultar na criação do Partido Trabalhista Britânico, aparecia em Londres a primeira edição do livro "Liberalism", escrito pelo jornalista, sociólogo e militante político Leonard T. Hobhouse. Concebido como obra de divulgação e elaborado em tom quase panfletário, tinha como objetivo conciliar - a partir de uma perspectiva de evolução histórica - a teoria política do liberalismo clássico com a defesa da justiça social e de um papel mais ativo do Estado, encampada pelos socialistas. Seguindo a senda já aberta por John Stuart Mill e Thomas Hill Green, a obra se tornou uma das elaborações mais populares da corrente denominada "social-liberalismo".
Como herança do pensamento liberal clássico, o autor enumera - a título exemplificativo - um rol de liberdades, cujo conteúdo poderia ser mais ou menos dilatado e reformulado em consonância com a necessidade histórica: liberdade civil (contra o poder coativo arbitrário), liberdade fiscal (princípio da legalidade dos tributos e controle da atividade legiferante por parte da sociedade), liberdade pessoal (compreendendo liberdade de culto religioso e de expressão), liberdade econômica (combate aos monopólios, liberdade de formas contratuais, direito de livre associação), liberdade doméstica (proteção à família e às suas figuras mais frágeis: mulheres e crianças), liberdade local (independência nacional), liberdade internacional (combate ao uso da força nas relações exteriores) e liberdade política (combinação de soberania popular, democracia de massas e aplicação moderada do poder coativo do Estado).  A gênese desses conceitos remontava à luta contra o arbítrio dos regimes absolutistas, iniciada no plano teórico por John Locke e consolidada, no plano prático, pelos reformadores posteriores à Revolução Francesa.
O liberalismo, entretanto, não se esgota nesse conjunto de liberdades, mas só se efetiva pela combinação destas com a possibilidade virtual de que todos os membros de uma comunidade tenham as mesmas chances de atualizar suas potencialidades. Do ponto de vista sociológico, o enfrentamento dessa questão se dá pelo reconhecimento de que a sociedade funciona de maneira orgânica, isto é, o bem-estar de suas partes individuais tem correlação profunda com a vitalidade do corpo social. Para que isto seja possível não basta que o Estado salvaguarde as liberdades acima listadas, mas necessita-se que ele assuma papel ativo, impedindo que cada um daqueles princípios - uma vez reforçado de maneira excessiva - se converta em seu contrário, em fonte de opressão. O exemplo clássico está na liberdade econômica, que, uma vez demasiado privilegiada, produz necessariamente desigualdades sociais e regionais, relegando boa parte da população para condições de penúria da qual não podem sair com suas próprias forças. Um corpo social que convive com um tal estado de coisas jamais poderá atualizar de maneira completa o potencial vital que nele reside.
O fundamento da intervenção estatal não reside na caridade - como defendiam, e ainda defendem, muitos conservadores - mas na cooperação espontânea entre os indivíduos, força motriz do progresso (entendido aqui como liberação de energia espiritual): em uma sociedade que impõe barreiras ao livre desenvolvimento de seus membros, o progresso pode até se manifestar acidentalmente, mas nunca deita raízes profundas. Dito de outro modo, a possibilidade do gozo das liberdades acima mencionadas é fundamental para o progresso e deve ser possibilitada não apenas de maneira negativa, mas também por meio do estímulo estatal. Neste ponto reside o momento de verdade do utilitarismo; a caridade, em si, não é promotora do progresso, mas o balanceamento das liberdades sob a luz da ideia de igualdade maximiza o potencial vital da população e reduz a necessidade da utilização do poder coativo estatal, que só necessita entrar em cena quando pode exigir dos cidadãos um determinado comportamento em respeito ao bem público: a responsabilidade corresponde às reais possibilidades do indivíduo.
A grande vantagem do liberalismo em relação às demais correntes políticas (em especial ao socialismo, combatido por Hobhouse em suas variantes mecanicista e estatista) residiria na possibilidade de apresentação de programas políticos de reformas concretas (algo fundamental para o início da ação parlamentar dos antigos membros das trade-unions) e na continuidade histórica de um pensamento que, ao se auto-aprofundar, permitira a incorporação de novas demandas que surgiam na sociedade civil, num contínuo e prolífico diálogo entre políticos, intelectuais e movimentos sociais.
Talvez as grandes lições que podemos, ainda hoje, tirar do pequeno livro de Hobhouse sejam, em primeiro lugar, a possibilidade de pensar profundas reformas sociais e combater a pobreza sem investir de maneira unilateral no aumento da competência do Estado, excesso que tolhe aos indivíduos um conjunto apreciável de campos em que a ação individual poderia fornecer soluções muito melhores do que as pensadas por técnicos e burocratas. De outra parte, sua reflexão oferece bons argumentos para fazer frente aos excessos cometidos pelos neoliberais, que culminam, invariavelmente, na estatofobia, na alimentação do mito da sociedade civil como panaceia universal e na ignorância da possibilidade que cada liberdade contem em seu âmago de se converter em seu funesto - e opressor - contrário. Revisitemos Hobhouse.

Sunday, February 13, 2011

Enfrentando o caos urbano nas metrópoles brasileiras

Seria provavelmente desinteressante e improdutivo arrolar os problemas dos quais padecem atualmente as grandes cidades brasileiras sem fornecer uma contrapartida de soluções praticáveis. Não pretendo empreender aqui algo de tal magnitude, mas simplesmente tecer breves comentários sobre um desses problemas e os possíveis caminhos a seguir se dele pretendermos nos ocupar: a degradação das áreas centrais nas grandes metrópoles brasileiras, particularmente da capital paulista.
No entender de um renomado especialista sobre o assunto, o arquiteto Nabil Bonduki (www.nabil.org.br), a degradação do centro de São Paulo está associada ao despovoamento dessa região, que, permanecendo como ponto de confluência e distribuição de transportes urbanos, tornou-se um pólo de comércio informal e usuários de drogas (cracolândias). A principal causa desse fluxo evasivo de moradores das áreas centrais consistiria na instalação dos serviços que atraem a demanda das classes mais favorecidas em regiões cada vez mais distantes do centro, onde, por seu turno, sobram edifícios abandonados ou sem utilização adequada. Acrescenta-se a isso o fato de que a área central nunca foi predominantemente povoada pelas populações de baixa renda, que, ao se instalar na cidade especialmente entre o final da década de 1960 e o começo da década de 1980 (época do grande fluxo migratório nordestino), foram compelidas a formar "anéis de pobreza" em bairros cada vez mais distantes e desprovidos de condições mínimas de infraestrutura.
O resultado desse processo é duplamente perverso: simultaneamente, sobram prédios sem aproveitamento na zona central  e grandes populações se comprimem em bairros cada vez mais distantes das áreas em que a economia é mais aquecida e, por conseguinte, se concentra a geração de empregos. Mais ainda, mesmo em seu atual estado de abandono, os imóveis situados no centro de São Paulo são de custo muito elevado para que a maior parte da população arque com suas despesas.
Do ponto de vista teórico e abstrato, boa parte da solução reside no incentivo à formação de laços comunitários a partir da estrutura por meio da qual o espaço urbano se configura. No entender da renomada urbanista Jane Jacobs (The Death and Life of Great American Cities, Modern Library, 1961), competiria ao poder público estimular, a um só tempo, a diversidade de funções urbanas e os espaços de convivência comunitários em todas as áreas: parques, calçadões, edifícios antigos com utilização pública, etc. A morte de uma grande cidade seria sua especialização unilateral, acelerada pela construção desenfreada de obras viárias.
No entanto, a solução cuja defesa fazia sentido para o crescimento verificado nas metrópoles estadunidenses dos anos 60 seria minimamente factível em uma metrópole brasileira como São Paulo? Há importantes indicadores em sentido positivo, como o sucesso consolidado da virada cultural e alguns projetos (ainda em fase embrionária) no sentido de possibilitar a instalação de habitações populares na zona central, economizando no transporte que conduz trabalhadores aos seus locais de trabalho e diminuindo as condições "ecológicas" (para utilizar um termo caro à escola de Chicago) para a instalação de novas cracolândias. Por outro lado, há também um conjunto de ações que conduzem perigosamente a novas tendências de especialização, como o estímulo ao aproveitamento unilateral de zonas inteiras para grandes projetos da iniciativa privada sem repercussão favorável para os moradores. Quer parecer, todavia, que uma eficácia verdadeiramente sólida do projeto de revitalização urbana passa por uma delicada combinação de incentivos públicos com a ação da iniciativa privada. Resta saber se os interesses usualmente predatórios dos grupos financeiros que investem no Brasil encamparão projetos de tamanha relevância social a despeito do eventual atraso que isto pode provocar em seu acelerado fluxo de rendimentos.

Saturday, February 12, 2011

O papel da oposição

Nos primeiros trinta dias do governo da "presidenta" Dilma Rousseff intensificou-se uma tendência peculiar aos últimos oito anos: o enfraquecimento da oposição e o risco da perda do status de entidades políticas independentes para os partidos que, de algum modo, não se componham com os projetos do atual governo. Tal estado de coisas não é gratuito, deve-se, antes de mais nada, à grande eficiência da máquina petista para - apoiada sobre a maré de crescimento econômico - cooptar diversos segmentos da sociedade, engajando-os numa obediência cega, que inclui reformas que - uma vez conhecido o seu verdadeiro teor - desagradariam em massa à grande maioria da população. Mas a questão não se limita a isso, pois aos atuais partidos de oposição (PSDB e DEM) pode-se imputar a omissão quase completa em apresentar linhas alternativas de ação na política, bem como o persistente erro estratégico de aguardar o estouro de novos escândalos de corrupção, função à qual seus líderes denominam - de maneira excessivamente auto-indulgente - de "fiscalização".
Ao ocupar o posto de oposição ao governo Fernando Henrique, o PT atacou, tanto no congresso quanto na opinião pública, as bases mesmas sobre as quais se sustentava a política do executivo, que, naqueles anos, privilegiou o controle da inflação e a recuperação do alento da economia: as privatizações foram rotuladas como vergonhosa venda do patrimônio nacional (motivada, é claro, por fins excusos), a corrupção  - em finais de 1995 - já seria a maior da história da república, os movimentos sociais seriam tratados como caso de polícia (mesmo que a violência policial tenha sido cometida por polícias estaduais, que não deviam obediência à união), a concentração de renda aumentaria a passos galopantes (mesmo que a economia estivesse estagnada em função de fatores externos, como as crises do México e da Rússia). Em síntese, a vitória eleitoral de Lula em 2002 foi uma grande desforra da população contra esse espantalho, a herança maldita, ardilosamente construído no período oposicionista do PT. Tratava-se de uma luta do Bem contra o Mal, do governo dos pobres contra o dos ricos.
Passando do governo à oposição, a aliança que sustentava o governo Fernando Henrique se viu completamente desnorteada com sua nova função: não soube responder às acusações contra ela lançadas (pelo menos perante à opinião pública), foi incapaz de apresentar projetos que fossem além da mera "eficiência administrativa" e, para coroar a inabilidade, assumiu o papel de moralista e guarda-noturno no episódio do "mensalão". Esqueceu-se de que compete à oposição apresentar um projeto alternativo de governo, que divirja em pontos essenciais daquele encampado pelo grupo político que exerce o poder; no tocante ao PT, citamos, a título de exemplo o seguinte rol de pontos controvertidos: o aumento crescente da estatização, que tem como corolário o crescimento da carga tributária e o sufoco da atividade empresarial independente (por esse termo entendo aqueles que não têm dinheiro ou influência o bastante para buscar apadrinhamento governamental), o movimento de controle dos canais da opinião pública (como os projetos de lei de imprensa), a desorganização jurídica promovida pela "farra" de medidas provisórias, os projetos de reforma política que privilegiam os atuais ocupantes do poder e dificultam a vida da oposição, o nível do ensino básico que - a despeito de toda a propaganda em torno da construção de novas escolas - teme em continuar caindo e muitas outras questões nem sequer trazidas à baila nos discursos oposicionistas no congresso.
Se tais pontos não forem atacados, os atuais partidos de oposição correm sério risco de extinção, caso em que ficaríamos no aguardo do surgimento de uma grupo alternativo, que só poderia provir de duas fontes: uma dissenção no interior da base governista ou um movimento de opinião articulado dentro da sociedade civil. Com a falta de senso crítico da imprensa oficial, esta última opção parece cada vez mais improvável, ao passo que - enquanto a distribuição de cargos estiver em dia - é mais difícil ainda contar com a primeira. Diante desse quadro, o novo "pacto federativo" pode chegar na autoritária forma do monismo partidário.

Thursday, February 10, 2011

Sobre os acontecimentos no Egito

Desde os tempos de Mohammed Ali, em meados do século XIX, o Egito assumiu um projeto nacional de modernização que combina aspectos ocidentais com regimes autoritários de suporte militarista que mantiveram a religião islâmica relativamente alheia aos assuntos de governo. Os resultados, até hoje, foram cristalizações históricas peculiares, das quais a de maiores repercussões foi o movimento pan-arabista, iniciado na década de 1950 pelo então presidente Gamal Abdel Nasser. O fulcro desse movimento foi a criação de uma agenda comum para os países de língua árabe (a maioria dos quais havia conquistado a independência das colonizações britânica e francesa ao final da II Guerra Mundial) a partir de uma orientação não-alinhada com nenhum dos dois grandes blocos que disputavam a supremacia global na guerra fria: o norte-americano e o soviético. Em menos de vinte anos o projeto fracassou, em parte devido às dificuldades de incorporação de instituições que viessem a assegurar o crescimento econômico e a prosperidade das populações (como os mecanismos de uma economia de mercado) e em parte devido à existência de um fator de desestabilização no Oriente Médio: a presença do estado de Israel, que, com o auxílio militar dos Estados Unidos, impôs derrotas militares decisivas aos países árabes. Tais eventos provocaram a queda de governos, uma guerra civil que devastou o Líbano durante décadas e compeliram os remanescentes a buscarem o apoio de Washington.
Como espólio do pan-arabismo, restaram alguns governos autoritários na região do Oriente Médio, dos quais o de Hosni Mubarak ("neto" espiritual de Nasser) é o de maior destaque; apoiado por um exército obediente e bem equipado e respaldado por um acordo de paz com Israel, Mubarak vem se mantendo no governo desde o assassinato de seu antecessor, Anwar Al-Sadat, fuzilado durante um desfile militar nos anos 80.
Em oposição aos regimes edificados pelo projeto pan-arabista, surgiram movimentos que pregam a negação completa da influência ocidental - responsabilizada como causadora da miséria e do atraso dos países muçulmanos - a partir de interpretações literais do Alcorão; dentre esses grupos, inclui-se a irmandade muçulmana, surgida nos anos 70, e que, ao se desmembrar, gerou uma série de entidades terroristas como a rede Al Qaeda.
A grande questão que cabe colocar no dia de hoje é: estamos diante da opção "Mubarak X democracia" ou "Mubarak X Radicalismo Islâmico"? O contorno da situação não nos permite responder de maneira satisfatória se a irmandade muçulmana está disposta a patrocinar um governo laico e que assegure liberdades democráticas ou se pretende ressuscitar os conflitos com Israel a partir da exumação do conceito pútrido de "guerra santa". Paralelamente, vivemos em uma época em que o conceito de modernização em moldes ocidentais vem sendo cada vez mais questionado tanto em função de suas falhas na manutenção de uma economia de mercado em moldes liberais quanto na questão da sustentabilidade ecológica. Em meio a esse turbilhão geopolítico, o Egito, emulador histórico do ocidente, terá forçosamente de aprender a andar com suas próprias pernas.

Wednesday, February 9, 2011

Se a economia e o emprego se expandem, por que a criminalidade não diminui?

Desde os tempos do ensino fundamental, ouvi e aceitei como explicação para a violência endêmica em nosso país que nossa gigantesca desigualdade social era a causa dos altos índices de criminalidade. Por conseguinte, o criminoso não é culpado, mas vítima de uma sociedade injusta.
Nos últimos oito anos, todavia, a renda média do brasileiro aumentou consideravelmente e, com a expansão generalizada do consumo, aquilo que um dia pareceu uma barreira intransponível entre classes sociais hoje se mostra como um fosso em vias de ser preenchido. Diante desses fatos, uma pergunta óbvia se impõe: se a violência é causada pela miséria e pela desigualdade social, a queda destas não deveria ser acompanhada - de maneira diretamente proporcional - pela queda dos índices de violência e crimes contra o patrimônio? Contudo, basta um olhar de relance para as estatísticas atinentes a essas ocorrências para constatar que a criminalidade (em suas modalidades mais corriqueiras: crimes contra a vida e crimes violentos contra o patrimônio) não vem diminuindo, mas meramente oscilando dentro de uma margem de erro. E - mais grave - nos anos em que o número de homicídios caiu, verificou-se um aumento no número de tentativas, o que nos leva à conclusão de que esses crimes não diminuíram, mas sim a mira de seus potenciais autores...
O resultado dessa reflexão é que a explicação tradicionalmente aceita para a violência deve ser, no mínimo, revista, sendo este problema repensado à luz de outros fatores, como a estrutura cambiante dos núcleos familiares e o conteúdo insuficiente e falho de nosso ensino básico.