Sunday, July 14, 2013

A Herança do 14 de julho

Quando ouvimos falar na revolução francesa, usualmente se alude ao surgimento da democracia, das liberdades, dos direitos humanos, da preocupação com a desigualdade social e ao combate à superstição e ao obscurantismo medievais. Nessa pequena reflexão, gostaria de problematizar essa visão tradicional colocando em evidência algumas dificuldades que dela decorrem, especialmente no tocante às práticas políticas e culturais que se consolidaram naquele importante acontecimento político.
O primeiro ponto diz respeito às origens intelectuais da revolução francesa no século XVIII. A despeito das importantes contribuições dadas pelos pensadores da época no sentido de favorecer uma abertura no sufocante ambiente político e econômico do antigo regime (ordenado pelos critérios da razão de estado montada por Richelieu e pela tradição maquiavélica), é importante compreendermos que - especialmente na França - nem tudo era luzes no século XVIII. Senão vejamos: em um estudo clássico denominado "Crítica e Crise", o historiador alemão Reinhart Koselleck aponta o papel decisivo desempenhado pelas sociedades secretas de cunho esotérico na formulação e divulgação do pensamento ilustrado oitocentista. Enquanto criticavam o caráter hermético da administração pública absolutista e do clero católico, muitos pensadores iluministas se submetiam a estranhos rituais totalmente inacessíveis ao grande público e sobre os quais juravam guardar segredo. Um dos méritos da obra de Koselleck é mostrar as repercussões que isso teve no pensamento de autores como Rousseau, Lessing e até mesmo Goethe e que influenciaram de maneira direta a formulação dos princípios políticos defendidos por figuras chave da revolução, especialmente de sua fase mais radical. 
Ainda ligada a essa questão, salientamos as duras críticas dirigidas pela "república das letras" contra os costumes, o estado e a Igreja da época. Rigorosamente falando, Voltaire, Diderot, Rousseau, D'Holbach, Lessing e outros jamais refutaram uma vírgula da doutrina católica, mas criaram toda uma mitologia difamatória a partir de uma autoidentificação com o chamado "iluminismo romano" de Cícero, Lucrécio e Sêneca. Para esses autores - observa o historiador e psicanalista Peter Gay -, o racionalismo antigo seria um precursor deles próprios, mas teria padecido por conta de sua mescla com superstições decorrentes da ausência de um espírito científico na época, superstições estas que teriam sido alimentadas pelos propagadores do nascente cristianismo, cujos arautos não passariam de mentirosos e aproveitadores. O papel da religião, no entender da maioria dos pensadores iluministas franceses, não deveria ir além de dar suporte às verdades científicas que vinham sendo descobertas e que - esperava-se - abririam espaço para uma organização racional e feliz de todos os aspectos da vida humana. 
A partir do momento em que alguns cientistas e filósofos se sentiram suficientemente confiantes para fazer ciência sem recorrer às verdades reveladas, estavam abertas as portas para o niilismo que tanto atormentaria o século XIX e para cujo preenchimento surgiram - especialmente no século XX- as ideias mais disparatadas.
Do ponto de vista político, é lícito fazermos a seguinte indagação: poderia o antigo regime ter-se reformado a si próprio, incorporando os aspectos liberais e democráticos do pensamento oitocentista combinados com a tradição constitucional francesa, baseada numa limitação do poder absoluto pela divisão de tarefas do estado com a nobreza e a organização social corporativa? Em um estudo clássico, publicado no ano de 1790, o conservador inglês Edmund Burke respondeu afirmativamente, chamando a atenção para os perigos que a derrubada repentina da monarquia e a adoção de princípios administrativos abstratos e que nunca haviam sido testados na prática ofereciam para a França. O sombrio vaticínio de Burke seria confirmado pelos sangrentos eventos de 1793, pelo corrupto e repressivo governo do diretório e - por fim - pela ditadura napoleônica, primeira ocasião histórica em que um só homem pôde, por seus delírios, jogar xadrez com boa parte da humanidade. 
Se examinarmos a experiência histórica da revolução francesa à luz das nossas questões atuais (especialmente no Brasil), penso que dela muitas lições podem ser extraídas. A primeira delas diz respeito às dificuldades decorrentes da adoção de princípios abstratos para a organização jurídica da sociedade, fazendo tábula rasa da tradição e das particularidades culturais de cada país. Com efeito, a história constitucional brasileira oferece uma galeria de experimentos legislativos desastrados (especialmente ao longo da república) devido à sanha de copiar modelos abstratos de origem estrangeira. A segunda - diretamente ligada à primeira - se manifesta na tendência dos governantes a aplicar de maneira autoritária essas normas, criando situações que de muitas maneiras se assemelham à ditadura jacobina, na qual uma espécie de lumpen-intelligentsia assumiu para si a missão de "forçar os cidadãos a serem livres" por meio da obediência incondicional a um conjunto de normas abstratas. 
Por fim, a atual tendência tanto dos meios de comunicação quanto de determinados setores da sociedade para buscar um "salvador da pátria" que corrija a desorganização gerada por um sistema jurídico mal concebido muito se assemelha à evolução política do "Abade" Sieyès, que de arauto da democracia passou a artífice da ditadura napoleônica. 
Evitando repetir os erros do passado e adotando uma política de estudo aprofundado dos costumes e aspirações reais do povo de nosso país, penso que podemos fazer uma leitura mais interessante da revolução francesa, compreendendo que seu desenlace violento estava enraizado na ingenuidade de alguns e na má fé de outros de seus principais atores, que desconheciam a vida do povo e careciam de experiência política para resolver de maneira criativa e construtiva os problemas que a época colocava. É por essas razões que penso que, para nós, defensores da liberdade, o 14 de julho não é data digna de comemoração. 

Thursday, July 4, 2013

Reflexões sobre o 4 de julho

            No ano de 1842, um juiz de direito estadunidense entrevistou um veterano da guerra de independência – que ,àquela época, contava noventa anos de idade – e indagou o motivo pelo qual este se havia engajado naquela sangrenta luta. Como resposta, o veterano respondeu que nunca havia tido contato com nenhuma doutrina política liberal, mas que ele e sua comunidade sempre haviam governado a si próprios e, a partir de um certo momento, o governo inglês decidiu que eles não mais poderiam fazê-lo (o episódio é narrado no excelente “Guia Politicamente Incorreto da História Americana”, de Thomas Woods). A partir disso, é válido levantarmos uma reflexão a respeito do significado do 4 de julho: politicamente, qual a lição mais preciosa que a independência americana nos legou? Numa primeira e abstrata abordagem podemos dizer que nela a liberdade e a democracia tiveram um de seus momentos mais brilhantes na história. Mas por quê?
            A fala do velho veterano nos dá uma pista importante: a criação dos Estados Unidos da América como país independente não foi motivada pela ânsia de implantação de grandes reformas políticas, muito menos para criar um novo tipo de homem, mas simplesmente para preservar uma situação de autogoverno da qual as treze colônias desfrutavam. A Constituição americana (ainda hoje em vigor) estabeleceu como regra básica a autogestão das pequenas comunidades, sendo que ao governo federal ficaram reservadas apenas aquelas tarefas que o indivíduo, a paróquia, o condado e o estado não podiam cumprir (como emissão de moeda nacional e política externa). Até mesmo o direito de separação da União era reservado aos estados originários.
            Desse modo, democracia e liberdade eram entendidas na América recém emancipada da metrópole britânica no sentido mais tarde formulado por Benjamin Constant em um texto clássico (“Da Liberdade dos Antigos comparada àquela dos Modernos”), ou seja, fundamentalmente como liberdade negativa, como conjunto de garantias fundamentais contra a ingerência do estado na vida privada. Dentre esses direitos fundamentais podemos citar o respeito à propriedade privada (com a vedação do confisco), a necessidade de consentimento dos interessados antes do estabelecimento de um tributo, liberdade de expressão, direito de ir e vir, etc. Utilizando de maneira livre a expressão cunhada pelo antropólogo francês Pierre Clastres, podemos dizer que a sociedade americana se organizou originariamente contra o estado.
            A grande questão que levantamos e cuja resposta é de importância decisiva para compreendermos nossa situação política atual e as tarefas que dela decorrem é “como pode uma sociedade se autogerir com um mínimo de interferência estatal?” A resposta pode ser encontrada como resultado de uma análise dos elementos que asseguraram a coesão social, a paz e a prosperidade dos Estados Unidos por tantos anos. Em primeiro lugar, deve-se colocar em evidência a unidade cultural em torno da fé cristã. Mesmo que no país não tenha havido uma Igreja predominante, os elementos básicos da profissão de fé em Cristo nortearam a fundação de todas as suas comunidades, especialmente a dignidade da pessoa humana com suas múltiplas ramificações: respeito à propriedade privada, caridade, espírito de poupança e boa gestão e valorização da família. Mencionamos também a influência relevante que entidades como a maçonaria e ideias iluministas (especialmente de John Locke e Montesquieu) exerceram na moldagem da sociedade americana pré-independência, dando destaque ao fato de que ali elementos cuja combinação degenerou em outra parte em violência ou – ao menos – em conflitos políticos foram integrados de maneira pacífica num edifício político e social harmonioso.
Em segundo lugar vimos ao longo da história americana o florescimento do empreendedorismo e da liberdade de mercado, que resultaram num quadro de predomínio do poder econômico sobre o poder político. Nesse ponto, diante da clássica tese marxista segundo a qual o poder político não passaria de um braço armado do poder econômico, é necessário abrirmos uma digressão.
            O elemento essencial do poder político é a coerção; segundo a conhecida definição do sociólogo Max Weber, o estado é um grupo de pessoas que detém o monopólio legítimo da força física. Se analisarmos a história dos povos até o surgimento do modo de produção capitalista, verificaremos sem dificuldade que o predomínio do poder político sobre o econômico foi a regra, com poucas exceções, que apenas a confirmam. Autores leais ao marxismo tradicional, como Gyorgy Lukács, ou desviantes da ortodoxia oficial, como Karl Wittfogel, foram levados diante dos fatos a reconhecer um “predomínio da superestrutura política sobre a infraestrutura econômica” nas sociedades antigas. Foi apenas com o surgimento do capitalismo que Marx pôde elaborar sua famosa fórmula segundo a qual “o estado é o comitê executivo da burguesia”. Contudo, conforme vimos, se aceitarmos essa explicação somos levados a considerar a maior parte da história humana como uma anomalia e apenas casos muito específicos como “normais” (a saber, estados capitalistas modernos onde os governantes ajam ostensivamente em benefício de determinados grupos de interesse).
            Mais sensata parece a explicação sugerida por Benjamin Constant e desenvolvida por uma plêiade de autores, dentre os quais mencionamos o economista austríaco Joseph Alois Schumpeter (“Imperialismo e Classes Sociais”). Segundo esses autores, o predomínio do poder político – baseado na coerção - sobre o econômico – baseado no contrato - significa o império da força sobre o consenso e teve como resultado histórico a destruição generalizada e irracional de seres humanos e bens economicamente produtivos. Basta pensarmos na quantidade de guerras absurdas travadas ao longo da história (se existe alguma guerra que não seja absurda....). A possibilidade de predomínio do poder econômico sobre o político surge apenas com o moderno capitalismo, no qual as energias que antigamente os homens empregavam na guerra e em disputas têm a possibilidade de ser realocadas em atividades mercantis. Assim, a destreza e a racionalidade humana passam – no capitalismo – a ter maior aptidão para servir à melhoria da qualidade de vida e a ingressar em relações regidas pelo acordo e respeito mútuo entre as partes. Parafraseando Constant  “o cumprimento espontâneo de um contrato é o respeito prestado à força do próximo”.
            Estudando essa possibilidade, vemos que os Estados Unidos foram criados com base no predomínio do poder econômico sobre o político, do consenso socialmente orquestrado em lugar da gigantesca força dos estados absolutistas europeus. Não é de se admirar que lá tenha surgido o terreno mais fértil do mundo para o florescimento do capitalismo e para a participação de todos os seus habitantes nos frutos da atividade econômica sem grandes convulsões internas. Com efeito, é lugar comum entre muitos historiadores conservadores americanos arrolar entre os presidentes mais bem sucedidos de seu país aqueles que menos interferiram nas atividades particulares e entre os mais desastrados aqueles com grandes planos de reforma social.

            O 4 de julho é, portanto, o símbolo da vitória desses princípios sobre o desejo de autoampliação do poder estatal tão bem ilustrado por Bertrand de Jouvenel em seu livro “Du Pouvoior”. Uma sociedade habituada a governar a si mesma e internamente dotada dos instrumentos para tal levantou armas e saiu vitoriosa contra uma metrópole ansiosa por tudo regular e por extrair – sem contrapartida – o fruto do trabalho de um povo.