Friday, February 25, 2011

Kadafi e sua bíblia

Um dos eventos simbólicos mais significativos dos protestos que se multiplicam pela Líbia nas últimas semanas foi a queima em massa de exemplares do "Livro Verde", panfleto concebido e publicado pelo ditador Muammar Kadafi em 1975 - momento de consolidação de seu regime - e que tinha como objetivo expor em linguagem acessível as linhas mestras do sistema de governo sui generis que estava em vias de ser instalado em seu país.
Pela leitura do texto (disponível em português no site: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/livroverde.pdf) salta à vista a influência de bandeiras defendidas pelo radicalismo político soixante-huitard (que tinha como uma de suas reivindicações a emancipação completa do "terceiro mundo"), temperado com elementos de primitivismo tribal que perfazem um conjunto argumentativo que regurgita de falácias de todos os gêneros (todas redutíveis, em última análise, a argumentos ad populum), mas que, possivelmente, soou como música para os ouvidos daqueles que conheceram as dificuldades de se conciliar uma sociedade fundada sobre princípios de organização milenarmente vigentes (a família, o clã, a tribo, a religião) com a indústria e a organização política introduzidos pelo colonizador ocidental.
A doutrina defendida no panfleto é denominada "terceira teoria universal" e tem como substrato a organização de uma democracia direta, isto é, uma forma de governo na qual o povo (conceito que o autor se furta de delimitar) seja o gestor direto de todos os seus interesses sem a intervenção das "máquinas de governar" unilaterais, os partidos políticos que lutavam pelo controle da política parlamentar. Segundo o argumento de Kadafi, os partidos representam automaticamente interesses parciais e a chamada democracia parlamentar ocidental nada mais é que uma ditadura disfarçada. A partir dessa interpretação flagrantemente sumária e unilateral dos fatos, o autor não tem pudores em efetuar um salto mortal para o reino dos valores, bradando (com pontos de exclamação) que o povo tem o direito de assumir seu próprio governo, criando uma nova "máquina de governar" não contaminada por interesses unilaterais. A organização dessa "máquina" seria feita a partir de congressos populares e comitês populares, nos quais seriam decididas diretamente pelo "povo" todas as questões atinentes ao governo. Contra a possível objeção de que a democracia parlamentar se ancora em garantias constitucionais, o ditador replica que estas não passam de formulações arbitrárias, ao passo que seu sistema se ancora na "lei natural". Sobre o fato de que esta - assim como aquela - também necessite de intérpretes não é dito uma palavra.
No tocante à organização econômica, Kadafi propõe a implantação de uma forma de socialismo infensa à divisão do trabalho e que busca se aproveitar das máquinas para alimentar uma economia natural, fundada na família e na tribo, na qual não existem trabalhadores assalariados nem se persegue o lucro e onde as máquinas criam a base para uma sociedade inteiramente produtiva, apta a suprir todas as necessidades materiais dos indivíduos. Ao contrário dos clássicos do marxismo, Kadafi defende o fortalecimento das comunidades naturais, que se desdobram em uma solução de continuidade da família, passando pela tribo, até a nação e cujas funções (incluindo a vingança de sangue) precisam ser preservadas  como unica forma eficiente de coesão social.
O resultado da implantação - regada, é preciso que se diga, por bilhões de petrodólares nos últimos quarenta anos - das políticas do "Livro Verde" está caindo hoje por terra e nos obriga a um conjunto de reflexões a respeito da função da organização interna dos partidos políticos e das mediações que obrigatoriamente se estabelecem entre os interesses parciais que se defrontam na sociedade civil e a formação de um consenso parlamentar capaz de gerar uma situação de governabilidade. Como bem observaram Robert Michels (Os Partidos Políticos, Lisboa, Antígona, 2001) e Angelo Panebianco (Modelos de Partido, São Paulo, Martins Fontes, 2002), os partidos não são expressões imediatas dos interesses sociais aos quais se vinculam, devendo seu aspecto organizacional ser levado em conta como pivô de uma maior ou menor transparência democrática; há, portanto, partidos que se organizam de maneira a proporcionar maiores condições de participação popular do que outros, mas nenhum sistema político na modernidade (seja uni ou multipartidário) pode prescindir desse aspecto organizacional (muito menos os chamados "congressos populares"), de modo que concluir que a democracia partidária é essencialmente ditatorial por conta do desvio que provoca na "vontade popular" é promover uma generalização apressada de casos pontuais (como o golpe nazista de 1933) para toda uma história de relevantes construções democráticas (como o parlamentarismo britânico).
Espera-se que das cinzas do "Livro Verde" brote um solo fértil para o pensamento e a instauração de novas e plurais formas de organização partidária neste deserto em que o petróleo tem servido como combustível para o sectarismo político.

Sunday, February 20, 2011

Nota sobre o ativismo judiciário

Ao discursarem na abertura do ano legislativo de 2011, os presidentes da câmara federal e do senado da república chamaram a atenção para a necessidade de aliviar o judiciário de uma série de demandas que, segundo eles, pertenceriam ao campo da política e não do direito. Dito de outra forma, aquilo que se convencionou chamar de ativismo judiciário parece estar extrapolando os limites da ação especificamente jurídica, dificultando que prestações propriamente jurisdicionais sejam oferecidas à população e furtando à arena da política um quinhão relevante de suas disputas internas; basta pensar nas decisões sobre a fidelidade partidária.
Tentando uma primeira aproximação, poderíamos dizer que o ativismo judiciário designa o desrespeito, por parte dos órgãos judicantes, do princípio clássico da separação de poderes, proposto por Montesquieu em sua obra, "O Espírito das Leis". Esta definição, todavia, apenas tangencia o problema, uma vez que, como todos os manuais de direito constitucional fazem questão de lembrar, esta teoria teve origem na má compreensão do autor, que extraiu, de maneira equivocada, do sistema parlamentar inglês as regras gerais para a formulá-la. A preocupação de Montesquieu era, fundamentalmente, impor o controle do executivo (fortaleza da razão de Estado) pelo legislativo (órgão representativo por excelência) e neutralizar o judiciário (naquela época um terreno de arrivistas e pseudo-eruditos). Contemporaneamente, mais correto seria dizer que cada um dos três poderes exerce as três funções próprias do Estado: legislar, executar e julgar. Mas, se isso é verdade, como imputar a um deles uma invasão ilegítima da esfera de competência exclusiva do outro?
O fundamento para responder a essa pergunta foi fornecido por Max Weber, que, em uma conferência denominada "A Política como Vocação" (Lisboa, Editorial Presença) definiu a modernidade como a era da  racionalização. Com esta formulação, buscava ele formular um princípio explicativo para possibilitar à sociologia inteligir a formulação de lógicas próprias e infensas a ingerências externas para cada campo do agir humano na modernidade (política, direito, economia, arte, etc): enquanto à política compete a luta pela implantação social de valores ao direito caberia zelar (a partir de sua interna) - por meio da administração do aparato coercitivo estatal - pelo cumprimento dos valores estabelecidos por aquela; aos ordenamentos jurídicos que cumprem essa função denomina Weber de "racionalizados". Isto não significa que no direito não intervenham motivos de ação políticos, mas que, na modernidade, estes submergem frente à organização sui generis do sistema jurídico. Levando este princípio explicativo para a filosofia do direito, Hans Kelsen se valeu do insight weberiano para formular seu projeto mais ambicioso, a "Teoria Pura do Direito", que advogava a ideia de que, para ser compreendido cientificamente, o direito deveria ser abordado por sua lógica própria, de uma ordem de coerção organizada estaticamente como uma hierarquia normativa e que, dinamicamente, se articulava pelo princípio da imputação, a atribuição de consequencias jurídicas a situações de fato.  
Talvez a maior contribuição de Kelsen tenha sido a vigorosa defesa da especificidade do direito frente à política; ele não negava que os juízes, muitas vezes (talvez na maior parte delas) decidem movidos por ideias políticas, mas afirmava que, uma vez incorporado ao sistema jurídico, esse conteúdo se reporta ao sistema de atribuição de competências e à estrutura normativa próprios do direito. É precisamente isso que está em questão quando falamos em ativismo judiciário: a invasão desestruturadora do campo do direito pela lógica própria da política, que, por definição, opera através da luta pela imposição social de valores. Cabe então a pergunta: seria o direito um mecanismo apto à imposição social de novos valores ou simplesmente um meio para fazer valer aqueles que já estão sedimentados? No entender de um liberal do início do século XX, como Hobhouse, a pergunta não ofereceria dificuldades, mas, com o surgimento de novas funções constitucionais, como a realização de direitos fundamentais a partir de um programa de reforma social e desenvolvimento nacional (tema formulado nos anos 70 pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho em sua obra "Direito Constitucional e Teoria da Constituição") a questão ganha novos contornos, pois a política se encastelou no centro nervoso dos novos sistemas jurídicos nacionais e dos projetos de ordem jurídica internacional. Com esta nova configuração, cria-se o risco de que os tribunais (desde as primeiras intâncias até as cortes internacionais) percam de vista o gigantesco acúmulo de conhecimento que se produziu no campo específico do direito em nome da exigência imediata de "fazer justiça". É sob o honroso manto dessa expressão que os maiores defensores do ativismo judiciário se justificam perante todo o tipo de críticas; mas o projeto de se fazer justiça por essa via esbarra - especialmente em países como o Brasil - na dificuldade estrutural em que o judiciário se encontra para resolver todos os tipos de caso, mesmo os de menor complexidade. De outra parte, desde o momento em que o poder legislativo fica refém da desmedida emissão de medidas provisórias pelo executivo, o judiciário se vê forçado a assumir parte das competências que originariamente seriam de titularidade do parlamento. 
O ativismo parece, portanto, entrar em conflito consigo próprio ao não conseguir sedimentar no tecido social os valores que só a política poderia impor (valendo-se de meios democráticos, de preferência) e ao tropeçar em seu próprio pressuposto: o de que,  parafraseando Gottfried Keller, "tudo é política, até mesmo nos tribunais". 

Thursday, February 17, 2011

O centenário de "Liberalismo"

Em 1911, sob o alento da aliança entre liberais e trade-unionistas, que viria a resultar na criação do Partido Trabalhista Britânico, aparecia em Londres a primeira edição do livro "Liberalism", escrito pelo jornalista, sociólogo e militante político Leonard T. Hobhouse. Concebido como obra de divulgação e elaborado em tom quase panfletário, tinha como objetivo conciliar - a partir de uma perspectiva de evolução histórica - a teoria política do liberalismo clássico com a defesa da justiça social e de um papel mais ativo do Estado, encampada pelos socialistas. Seguindo a senda já aberta por John Stuart Mill e Thomas Hill Green, a obra se tornou uma das elaborações mais populares da corrente denominada "social-liberalismo".
Como herança do pensamento liberal clássico, o autor enumera - a título exemplificativo - um rol de liberdades, cujo conteúdo poderia ser mais ou menos dilatado e reformulado em consonância com a necessidade histórica: liberdade civil (contra o poder coativo arbitrário), liberdade fiscal (princípio da legalidade dos tributos e controle da atividade legiferante por parte da sociedade), liberdade pessoal (compreendendo liberdade de culto religioso e de expressão), liberdade econômica (combate aos monopólios, liberdade de formas contratuais, direito de livre associação), liberdade doméstica (proteção à família e às suas figuras mais frágeis: mulheres e crianças), liberdade local (independência nacional), liberdade internacional (combate ao uso da força nas relações exteriores) e liberdade política (combinação de soberania popular, democracia de massas e aplicação moderada do poder coativo do Estado).  A gênese desses conceitos remontava à luta contra o arbítrio dos regimes absolutistas, iniciada no plano teórico por John Locke e consolidada, no plano prático, pelos reformadores posteriores à Revolução Francesa.
O liberalismo, entretanto, não se esgota nesse conjunto de liberdades, mas só se efetiva pela combinação destas com a possibilidade virtual de que todos os membros de uma comunidade tenham as mesmas chances de atualizar suas potencialidades. Do ponto de vista sociológico, o enfrentamento dessa questão se dá pelo reconhecimento de que a sociedade funciona de maneira orgânica, isto é, o bem-estar de suas partes individuais tem correlação profunda com a vitalidade do corpo social. Para que isto seja possível não basta que o Estado salvaguarde as liberdades acima listadas, mas necessita-se que ele assuma papel ativo, impedindo que cada um daqueles princípios - uma vez reforçado de maneira excessiva - se converta em seu contrário, em fonte de opressão. O exemplo clássico está na liberdade econômica, que, uma vez demasiado privilegiada, produz necessariamente desigualdades sociais e regionais, relegando boa parte da população para condições de penúria da qual não podem sair com suas próprias forças. Um corpo social que convive com um tal estado de coisas jamais poderá atualizar de maneira completa o potencial vital que nele reside.
O fundamento da intervenção estatal não reside na caridade - como defendiam, e ainda defendem, muitos conservadores - mas na cooperação espontânea entre os indivíduos, força motriz do progresso (entendido aqui como liberação de energia espiritual): em uma sociedade que impõe barreiras ao livre desenvolvimento de seus membros, o progresso pode até se manifestar acidentalmente, mas nunca deita raízes profundas. Dito de outro modo, a possibilidade do gozo das liberdades acima mencionadas é fundamental para o progresso e deve ser possibilitada não apenas de maneira negativa, mas também por meio do estímulo estatal. Neste ponto reside o momento de verdade do utilitarismo; a caridade, em si, não é promotora do progresso, mas o balanceamento das liberdades sob a luz da ideia de igualdade maximiza o potencial vital da população e reduz a necessidade da utilização do poder coativo estatal, que só necessita entrar em cena quando pode exigir dos cidadãos um determinado comportamento em respeito ao bem público: a responsabilidade corresponde às reais possibilidades do indivíduo.
A grande vantagem do liberalismo em relação às demais correntes políticas (em especial ao socialismo, combatido por Hobhouse em suas variantes mecanicista e estatista) residiria na possibilidade de apresentação de programas políticos de reformas concretas (algo fundamental para o início da ação parlamentar dos antigos membros das trade-unions) e na continuidade histórica de um pensamento que, ao se auto-aprofundar, permitira a incorporação de novas demandas que surgiam na sociedade civil, num contínuo e prolífico diálogo entre políticos, intelectuais e movimentos sociais.
Talvez as grandes lições que podemos, ainda hoje, tirar do pequeno livro de Hobhouse sejam, em primeiro lugar, a possibilidade de pensar profundas reformas sociais e combater a pobreza sem investir de maneira unilateral no aumento da competência do Estado, excesso que tolhe aos indivíduos um conjunto apreciável de campos em que a ação individual poderia fornecer soluções muito melhores do que as pensadas por técnicos e burocratas. De outra parte, sua reflexão oferece bons argumentos para fazer frente aos excessos cometidos pelos neoliberais, que culminam, invariavelmente, na estatofobia, na alimentação do mito da sociedade civil como panaceia universal e na ignorância da possibilidade que cada liberdade contem em seu âmago de se converter em seu funesto - e opressor - contrário. Revisitemos Hobhouse.

Sunday, February 13, 2011

Enfrentando o caos urbano nas metrópoles brasileiras

Seria provavelmente desinteressante e improdutivo arrolar os problemas dos quais padecem atualmente as grandes cidades brasileiras sem fornecer uma contrapartida de soluções praticáveis. Não pretendo empreender aqui algo de tal magnitude, mas simplesmente tecer breves comentários sobre um desses problemas e os possíveis caminhos a seguir se dele pretendermos nos ocupar: a degradação das áreas centrais nas grandes metrópoles brasileiras, particularmente da capital paulista.
No entender de um renomado especialista sobre o assunto, o arquiteto Nabil Bonduki (www.nabil.org.br), a degradação do centro de São Paulo está associada ao despovoamento dessa região, que, permanecendo como ponto de confluência e distribuição de transportes urbanos, tornou-se um pólo de comércio informal e usuários de drogas (cracolândias). A principal causa desse fluxo evasivo de moradores das áreas centrais consistiria na instalação dos serviços que atraem a demanda das classes mais favorecidas em regiões cada vez mais distantes do centro, onde, por seu turno, sobram edifícios abandonados ou sem utilização adequada. Acrescenta-se a isso o fato de que a área central nunca foi predominantemente povoada pelas populações de baixa renda, que, ao se instalar na cidade especialmente entre o final da década de 1960 e o começo da década de 1980 (época do grande fluxo migratório nordestino), foram compelidas a formar "anéis de pobreza" em bairros cada vez mais distantes e desprovidos de condições mínimas de infraestrutura.
O resultado desse processo é duplamente perverso: simultaneamente, sobram prédios sem aproveitamento na zona central  e grandes populações se comprimem em bairros cada vez mais distantes das áreas em que a economia é mais aquecida e, por conseguinte, se concentra a geração de empregos. Mais ainda, mesmo em seu atual estado de abandono, os imóveis situados no centro de São Paulo são de custo muito elevado para que a maior parte da população arque com suas despesas.
Do ponto de vista teórico e abstrato, boa parte da solução reside no incentivo à formação de laços comunitários a partir da estrutura por meio da qual o espaço urbano se configura. No entender da renomada urbanista Jane Jacobs (The Death and Life of Great American Cities, Modern Library, 1961), competiria ao poder público estimular, a um só tempo, a diversidade de funções urbanas e os espaços de convivência comunitários em todas as áreas: parques, calçadões, edifícios antigos com utilização pública, etc. A morte de uma grande cidade seria sua especialização unilateral, acelerada pela construção desenfreada de obras viárias.
No entanto, a solução cuja defesa fazia sentido para o crescimento verificado nas metrópoles estadunidenses dos anos 60 seria minimamente factível em uma metrópole brasileira como São Paulo? Há importantes indicadores em sentido positivo, como o sucesso consolidado da virada cultural e alguns projetos (ainda em fase embrionária) no sentido de possibilitar a instalação de habitações populares na zona central, economizando no transporte que conduz trabalhadores aos seus locais de trabalho e diminuindo as condições "ecológicas" (para utilizar um termo caro à escola de Chicago) para a instalação de novas cracolândias. Por outro lado, há também um conjunto de ações que conduzem perigosamente a novas tendências de especialização, como o estímulo ao aproveitamento unilateral de zonas inteiras para grandes projetos da iniciativa privada sem repercussão favorável para os moradores. Quer parecer, todavia, que uma eficácia verdadeiramente sólida do projeto de revitalização urbana passa por uma delicada combinação de incentivos públicos com a ação da iniciativa privada. Resta saber se os interesses usualmente predatórios dos grupos financeiros que investem no Brasil encamparão projetos de tamanha relevância social a despeito do eventual atraso que isto pode provocar em seu acelerado fluxo de rendimentos.

Saturday, February 12, 2011

O papel da oposição

Nos primeiros trinta dias do governo da "presidenta" Dilma Rousseff intensificou-se uma tendência peculiar aos últimos oito anos: o enfraquecimento da oposição e o risco da perda do status de entidades políticas independentes para os partidos que, de algum modo, não se componham com os projetos do atual governo. Tal estado de coisas não é gratuito, deve-se, antes de mais nada, à grande eficiência da máquina petista para - apoiada sobre a maré de crescimento econômico - cooptar diversos segmentos da sociedade, engajando-os numa obediência cega, que inclui reformas que - uma vez conhecido o seu verdadeiro teor - desagradariam em massa à grande maioria da população. Mas a questão não se limita a isso, pois aos atuais partidos de oposição (PSDB e DEM) pode-se imputar a omissão quase completa em apresentar linhas alternativas de ação na política, bem como o persistente erro estratégico de aguardar o estouro de novos escândalos de corrupção, função à qual seus líderes denominam - de maneira excessivamente auto-indulgente - de "fiscalização".
Ao ocupar o posto de oposição ao governo Fernando Henrique, o PT atacou, tanto no congresso quanto na opinião pública, as bases mesmas sobre as quais se sustentava a política do executivo, que, naqueles anos, privilegiou o controle da inflação e a recuperação do alento da economia: as privatizações foram rotuladas como vergonhosa venda do patrimônio nacional (motivada, é claro, por fins excusos), a corrupção  - em finais de 1995 - já seria a maior da história da república, os movimentos sociais seriam tratados como caso de polícia (mesmo que a violência policial tenha sido cometida por polícias estaduais, que não deviam obediência à união), a concentração de renda aumentaria a passos galopantes (mesmo que a economia estivesse estagnada em função de fatores externos, como as crises do México e da Rússia). Em síntese, a vitória eleitoral de Lula em 2002 foi uma grande desforra da população contra esse espantalho, a herança maldita, ardilosamente construído no período oposicionista do PT. Tratava-se de uma luta do Bem contra o Mal, do governo dos pobres contra o dos ricos.
Passando do governo à oposição, a aliança que sustentava o governo Fernando Henrique se viu completamente desnorteada com sua nova função: não soube responder às acusações contra ela lançadas (pelo menos perante à opinião pública), foi incapaz de apresentar projetos que fossem além da mera "eficiência administrativa" e, para coroar a inabilidade, assumiu o papel de moralista e guarda-noturno no episódio do "mensalão". Esqueceu-se de que compete à oposição apresentar um projeto alternativo de governo, que divirja em pontos essenciais daquele encampado pelo grupo político que exerce o poder; no tocante ao PT, citamos, a título de exemplo o seguinte rol de pontos controvertidos: o aumento crescente da estatização, que tem como corolário o crescimento da carga tributária e o sufoco da atividade empresarial independente (por esse termo entendo aqueles que não têm dinheiro ou influência o bastante para buscar apadrinhamento governamental), o movimento de controle dos canais da opinião pública (como os projetos de lei de imprensa), a desorganização jurídica promovida pela "farra" de medidas provisórias, os projetos de reforma política que privilegiam os atuais ocupantes do poder e dificultam a vida da oposição, o nível do ensino básico que - a despeito de toda a propaganda em torno da construção de novas escolas - teme em continuar caindo e muitas outras questões nem sequer trazidas à baila nos discursos oposicionistas no congresso.
Se tais pontos não forem atacados, os atuais partidos de oposição correm sério risco de extinção, caso em que ficaríamos no aguardo do surgimento de uma grupo alternativo, que só poderia provir de duas fontes: uma dissenção no interior da base governista ou um movimento de opinião articulado dentro da sociedade civil. Com a falta de senso crítico da imprensa oficial, esta última opção parece cada vez mais improvável, ao passo que - enquanto a distribuição de cargos estiver em dia - é mais difícil ainda contar com a primeira. Diante desse quadro, o novo "pacto federativo" pode chegar na autoritária forma do monismo partidário.

Thursday, February 10, 2011

Sobre os acontecimentos no Egito

Desde os tempos de Mohammed Ali, em meados do século XIX, o Egito assumiu um projeto nacional de modernização que combina aspectos ocidentais com regimes autoritários de suporte militarista que mantiveram a religião islâmica relativamente alheia aos assuntos de governo. Os resultados, até hoje, foram cristalizações históricas peculiares, das quais a de maiores repercussões foi o movimento pan-arabista, iniciado na década de 1950 pelo então presidente Gamal Abdel Nasser. O fulcro desse movimento foi a criação de uma agenda comum para os países de língua árabe (a maioria dos quais havia conquistado a independência das colonizações britânica e francesa ao final da II Guerra Mundial) a partir de uma orientação não-alinhada com nenhum dos dois grandes blocos que disputavam a supremacia global na guerra fria: o norte-americano e o soviético. Em menos de vinte anos o projeto fracassou, em parte devido às dificuldades de incorporação de instituições que viessem a assegurar o crescimento econômico e a prosperidade das populações (como os mecanismos de uma economia de mercado) e em parte devido à existência de um fator de desestabilização no Oriente Médio: a presença do estado de Israel, que, com o auxílio militar dos Estados Unidos, impôs derrotas militares decisivas aos países árabes. Tais eventos provocaram a queda de governos, uma guerra civil que devastou o Líbano durante décadas e compeliram os remanescentes a buscarem o apoio de Washington.
Como espólio do pan-arabismo, restaram alguns governos autoritários na região do Oriente Médio, dos quais o de Hosni Mubarak ("neto" espiritual de Nasser) é o de maior destaque; apoiado por um exército obediente e bem equipado e respaldado por um acordo de paz com Israel, Mubarak vem se mantendo no governo desde o assassinato de seu antecessor, Anwar Al-Sadat, fuzilado durante um desfile militar nos anos 80.
Em oposição aos regimes edificados pelo projeto pan-arabista, surgiram movimentos que pregam a negação completa da influência ocidental - responsabilizada como causadora da miséria e do atraso dos países muçulmanos - a partir de interpretações literais do Alcorão; dentre esses grupos, inclui-se a irmandade muçulmana, surgida nos anos 70, e que, ao se desmembrar, gerou uma série de entidades terroristas como a rede Al Qaeda.
A grande questão que cabe colocar no dia de hoje é: estamos diante da opção "Mubarak X democracia" ou "Mubarak X Radicalismo Islâmico"? O contorno da situação não nos permite responder de maneira satisfatória se a irmandade muçulmana está disposta a patrocinar um governo laico e que assegure liberdades democráticas ou se pretende ressuscitar os conflitos com Israel a partir da exumação do conceito pútrido de "guerra santa". Paralelamente, vivemos em uma época em que o conceito de modernização em moldes ocidentais vem sendo cada vez mais questionado tanto em função de suas falhas na manutenção de uma economia de mercado em moldes liberais quanto na questão da sustentabilidade ecológica. Em meio a esse turbilhão geopolítico, o Egito, emulador histórico do ocidente, terá forçosamente de aprender a andar com suas próprias pernas.

Wednesday, February 9, 2011

Se a economia e o emprego se expandem, por que a criminalidade não diminui?

Desde os tempos do ensino fundamental, ouvi e aceitei como explicação para a violência endêmica em nosso país que nossa gigantesca desigualdade social era a causa dos altos índices de criminalidade. Por conseguinte, o criminoso não é culpado, mas vítima de uma sociedade injusta.
Nos últimos oito anos, todavia, a renda média do brasileiro aumentou consideravelmente e, com a expansão generalizada do consumo, aquilo que um dia pareceu uma barreira intransponível entre classes sociais hoje se mostra como um fosso em vias de ser preenchido. Diante desses fatos, uma pergunta óbvia se impõe: se a violência é causada pela miséria e pela desigualdade social, a queda destas não deveria ser acompanhada - de maneira diretamente proporcional - pela queda dos índices de violência e crimes contra o patrimônio? Contudo, basta um olhar de relance para as estatísticas atinentes a essas ocorrências para constatar que a criminalidade (em suas modalidades mais corriqueiras: crimes contra a vida e crimes violentos contra o patrimônio) não vem diminuindo, mas meramente oscilando dentro de uma margem de erro. E - mais grave - nos anos em que o número de homicídios caiu, verificou-se um aumento no número de tentativas, o que nos leva à conclusão de que esses crimes não diminuíram, mas sim a mira de seus potenciais autores...
O resultado dessa reflexão é que a explicação tradicionalmente aceita para a violência deve ser, no mínimo, revista, sendo este problema repensado à luz de outros fatores, como a estrutura cambiante dos núcleos familiares e o conteúdo insuficiente e falho de nosso ensino básico.