Thursday, February 10, 2011

Sobre os acontecimentos no Egito

Desde os tempos de Mohammed Ali, em meados do século XIX, o Egito assumiu um projeto nacional de modernização que combina aspectos ocidentais com regimes autoritários de suporte militarista que mantiveram a religião islâmica relativamente alheia aos assuntos de governo. Os resultados, até hoje, foram cristalizações históricas peculiares, das quais a de maiores repercussões foi o movimento pan-arabista, iniciado na década de 1950 pelo então presidente Gamal Abdel Nasser. O fulcro desse movimento foi a criação de uma agenda comum para os países de língua árabe (a maioria dos quais havia conquistado a independência das colonizações britânica e francesa ao final da II Guerra Mundial) a partir de uma orientação não-alinhada com nenhum dos dois grandes blocos que disputavam a supremacia global na guerra fria: o norte-americano e o soviético. Em menos de vinte anos o projeto fracassou, em parte devido às dificuldades de incorporação de instituições que viessem a assegurar o crescimento econômico e a prosperidade das populações (como os mecanismos de uma economia de mercado) e em parte devido à existência de um fator de desestabilização no Oriente Médio: a presença do estado de Israel, que, com o auxílio militar dos Estados Unidos, impôs derrotas militares decisivas aos países árabes. Tais eventos provocaram a queda de governos, uma guerra civil que devastou o Líbano durante décadas e compeliram os remanescentes a buscarem o apoio de Washington.
Como espólio do pan-arabismo, restaram alguns governos autoritários na região do Oriente Médio, dos quais o de Hosni Mubarak ("neto" espiritual de Nasser) é o de maior destaque; apoiado por um exército obediente e bem equipado e respaldado por um acordo de paz com Israel, Mubarak vem se mantendo no governo desde o assassinato de seu antecessor, Anwar Al-Sadat, fuzilado durante um desfile militar nos anos 80.
Em oposição aos regimes edificados pelo projeto pan-arabista, surgiram movimentos que pregam a negação completa da influência ocidental - responsabilizada como causadora da miséria e do atraso dos países muçulmanos - a partir de interpretações literais do Alcorão; dentre esses grupos, inclui-se a irmandade muçulmana, surgida nos anos 70, e que, ao se desmembrar, gerou uma série de entidades terroristas como a rede Al Qaeda.
A grande questão que cabe colocar no dia de hoje é: estamos diante da opção "Mubarak X democracia" ou "Mubarak X Radicalismo Islâmico"? O contorno da situação não nos permite responder de maneira satisfatória se a irmandade muçulmana está disposta a patrocinar um governo laico e que assegure liberdades democráticas ou se pretende ressuscitar os conflitos com Israel a partir da exumação do conceito pútrido de "guerra santa". Paralelamente, vivemos em uma época em que o conceito de modernização em moldes ocidentais vem sendo cada vez mais questionado tanto em função de suas falhas na manutenção de uma economia de mercado em moldes liberais quanto na questão da sustentabilidade ecológica. Em meio a esse turbilhão geopolítico, o Egito, emulador histórico do ocidente, terá forçosamente de aprender a andar com suas próprias pernas.

2 comments:

  1. Fabio, sabendo que os norte americanos não largam o osso facilmente, que despejaram bilhões de dólares no Egito nas últimas décadas, a saída de Mubarak não representaria uma espécie de "Queda do muro de Berlin" na região?
    O risco do Egito pender para o lado fundamentalista só intensifica a atenção de Washington para mudanças estratégicas.
    Porque nas últimas décadas, embora a instabilidade tenha pairado sobre a região, o Egito foi fundamental para as vitórias norte americanas ali.
    Em todo caso, esta transformação recente no país pode servir como exemplo a ser seguido pelos demais países árabes, onde a democracia ainda não chegou a se estabelecer como regime político.
    Andar com as próprias pernas talvez aconteça no sentido de descobrir uma forma de transição entre o regime antigo de liberdades restritas para a conquista de autonomia individual. Ainda assim as mãos inevitavelmente permanecerão norte americanas.

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  2. Olá, Digabou.
    A mim me parece que a grande dificuldade seja encontrar uma forma de instituir e tornar eficazes as garantias democráticas mínimas para o funcionamento normal do país. Todas as grandes democracias tiveram um longo período de "aprendizado político" para chegarem a ser o que são e nenhum dos países muçulmanos até hoje conseguiu obter sucesso nessa empreitada. Quanto ao papel dos EUA, vai depender da disposição do novo governo egípcio para manter os acordos de paz com Israel; vamos esperar pra ver!

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