Sunday, February 20, 2011

Nota sobre o ativismo judiciário

Ao discursarem na abertura do ano legislativo de 2011, os presidentes da câmara federal e do senado da república chamaram a atenção para a necessidade de aliviar o judiciário de uma série de demandas que, segundo eles, pertenceriam ao campo da política e não do direito. Dito de outra forma, aquilo que se convencionou chamar de ativismo judiciário parece estar extrapolando os limites da ação especificamente jurídica, dificultando que prestações propriamente jurisdicionais sejam oferecidas à população e furtando à arena da política um quinhão relevante de suas disputas internas; basta pensar nas decisões sobre a fidelidade partidária.
Tentando uma primeira aproximação, poderíamos dizer que o ativismo judiciário designa o desrespeito, por parte dos órgãos judicantes, do princípio clássico da separação de poderes, proposto por Montesquieu em sua obra, "O Espírito das Leis". Esta definição, todavia, apenas tangencia o problema, uma vez que, como todos os manuais de direito constitucional fazem questão de lembrar, esta teoria teve origem na má compreensão do autor, que extraiu, de maneira equivocada, do sistema parlamentar inglês as regras gerais para a formulá-la. A preocupação de Montesquieu era, fundamentalmente, impor o controle do executivo (fortaleza da razão de Estado) pelo legislativo (órgão representativo por excelência) e neutralizar o judiciário (naquela época um terreno de arrivistas e pseudo-eruditos). Contemporaneamente, mais correto seria dizer que cada um dos três poderes exerce as três funções próprias do Estado: legislar, executar e julgar. Mas, se isso é verdade, como imputar a um deles uma invasão ilegítima da esfera de competência exclusiva do outro?
O fundamento para responder a essa pergunta foi fornecido por Max Weber, que, em uma conferência denominada "A Política como Vocação" (Lisboa, Editorial Presença) definiu a modernidade como a era da  racionalização. Com esta formulação, buscava ele formular um princípio explicativo para possibilitar à sociologia inteligir a formulação de lógicas próprias e infensas a ingerências externas para cada campo do agir humano na modernidade (política, direito, economia, arte, etc): enquanto à política compete a luta pela implantação social de valores ao direito caberia zelar (a partir de sua interna) - por meio da administração do aparato coercitivo estatal - pelo cumprimento dos valores estabelecidos por aquela; aos ordenamentos jurídicos que cumprem essa função denomina Weber de "racionalizados". Isto não significa que no direito não intervenham motivos de ação políticos, mas que, na modernidade, estes submergem frente à organização sui generis do sistema jurídico. Levando este princípio explicativo para a filosofia do direito, Hans Kelsen se valeu do insight weberiano para formular seu projeto mais ambicioso, a "Teoria Pura do Direito", que advogava a ideia de que, para ser compreendido cientificamente, o direito deveria ser abordado por sua lógica própria, de uma ordem de coerção organizada estaticamente como uma hierarquia normativa e que, dinamicamente, se articulava pelo princípio da imputação, a atribuição de consequencias jurídicas a situações de fato.  
Talvez a maior contribuição de Kelsen tenha sido a vigorosa defesa da especificidade do direito frente à política; ele não negava que os juízes, muitas vezes (talvez na maior parte delas) decidem movidos por ideias políticas, mas afirmava que, uma vez incorporado ao sistema jurídico, esse conteúdo se reporta ao sistema de atribuição de competências e à estrutura normativa próprios do direito. É precisamente isso que está em questão quando falamos em ativismo judiciário: a invasão desestruturadora do campo do direito pela lógica própria da política, que, por definição, opera através da luta pela imposição social de valores. Cabe então a pergunta: seria o direito um mecanismo apto à imposição social de novos valores ou simplesmente um meio para fazer valer aqueles que já estão sedimentados? No entender de um liberal do início do século XX, como Hobhouse, a pergunta não ofereceria dificuldades, mas, com o surgimento de novas funções constitucionais, como a realização de direitos fundamentais a partir de um programa de reforma social e desenvolvimento nacional (tema formulado nos anos 70 pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho em sua obra "Direito Constitucional e Teoria da Constituição") a questão ganha novos contornos, pois a política se encastelou no centro nervoso dos novos sistemas jurídicos nacionais e dos projetos de ordem jurídica internacional. Com esta nova configuração, cria-se o risco de que os tribunais (desde as primeiras intâncias até as cortes internacionais) percam de vista o gigantesco acúmulo de conhecimento que se produziu no campo específico do direito em nome da exigência imediata de "fazer justiça". É sob o honroso manto dessa expressão que os maiores defensores do ativismo judiciário se justificam perante todo o tipo de críticas; mas o projeto de se fazer justiça por essa via esbarra - especialmente em países como o Brasil - na dificuldade estrutural em que o judiciário se encontra para resolver todos os tipos de caso, mesmo os de menor complexidade. De outra parte, desde o momento em que o poder legislativo fica refém da desmedida emissão de medidas provisórias pelo executivo, o judiciário se vê forçado a assumir parte das competências que originariamente seriam de titularidade do parlamento. 
O ativismo parece, portanto, entrar em conflito consigo próprio ao não conseguir sedimentar no tecido social os valores que só a política poderia impor (valendo-se de meios democráticos, de preferência) e ao tropeçar em seu próprio pressuposto: o de que,  parafraseando Gottfried Keller, "tudo é política, até mesmo nos tribunais". 

No comments:

Post a Comment