Sunday, July 14, 2013

A Herança do 14 de julho

Quando ouvimos falar na revolução francesa, usualmente se alude ao surgimento da democracia, das liberdades, dos direitos humanos, da preocupação com a desigualdade social e ao combate à superstição e ao obscurantismo medievais. Nessa pequena reflexão, gostaria de problematizar essa visão tradicional colocando em evidência algumas dificuldades que dela decorrem, especialmente no tocante às práticas políticas e culturais que se consolidaram naquele importante acontecimento político.
O primeiro ponto diz respeito às origens intelectuais da revolução francesa no século XVIII. A despeito das importantes contribuições dadas pelos pensadores da época no sentido de favorecer uma abertura no sufocante ambiente político e econômico do antigo regime (ordenado pelos critérios da razão de estado montada por Richelieu e pela tradição maquiavélica), é importante compreendermos que - especialmente na França - nem tudo era luzes no século XVIII. Senão vejamos: em um estudo clássico denominado "Crítica e Crise", o historiador alemão Reinhart Koselleck aponta o papel decisivo desempenhado pelas sociedades secretas de cunho esotérico na formulação e divulgação do pensamento ilustrado oitocentista. Enquanto criticavam o caráter hermético da administração pública absolutista e do clero católico, muitos pensadores iluministas se submetiam a estranhos rituais totalmente inacessíveis ao grande público e sobre os quais juravam guardar segredo. Um dos méritos da obra de Koselleck é mostrar as repercussões que isso teve no pensamento de autores como Rousseau, Lessing e até mesmo Goethe e que influenciaram de maneira direta a formulação dos princípios políticos defendidos por figuras chave da revolução, especialmente de sua fase mais radical. 
Ainda ligada a essa questão, salientamos as duras críticas dirigidas pela "república das letras" contra os costumes, o estado e a Igreja da época. Rigorosamente falando, Voltaire, Diderot, Rousseau, D'Holbach, Lessing e outros jamais refutaram uma vírgula da doutrina católica, mas criaram toda uma mitologia difamatória a partir de uma autoidentificação com o chamado "iluminismo romano" de Cícero, Lucrécio e Sêneca. Para esses autores - observa o historiador e psicanalista Peter Gay -, o racionalismo antigo seria um precursor deles próprios, mas teria padecido por conta de sua mescla com superstições decorrentes da ausência de um espírito científico na época, superstições estas que teriam sido alimentadas pelos propagadores do nascente cristianismo, cujos arautos não passariam de mentirosos e aproveitadores. O papel da religião, no entender da maioria dos pensadores iluministas franceses, não deveria ir além de dar suporte às verdades científicas que vinham sendo descobertas e que - esperava-se - abririam espaço para uma organização racional e feliz de todos os aspectos da vida humana. 
A partir do momento em que alguns cientistas e filósofos se sentiram suficientemente confiantes para fazer ciência sem recorrer às verdades reveladas, estavam abertas as portas para o niilismo que tanto atormentaria o século XIX e para cujo preenchimento surgiram - especialmente no século XX- as ideias mais disparatadas.
Do ponto de vista político, é lícito fazermos a seguinte indagação: poderia o antigo regime ter-se reformado a si próprio, incorporando os aspectos liberais e democráticos do pensamento oitocentista combinados com a tradição constitucional francesa, baseada numa limitação do poder absoluto pela divisão de tarefas do estado com a nobreza e a organização social corporativa? Em um estudo clássico, publicado no ano de 1790, o conservador inglês Edmund Burke respondeu afirmativamente, chamando a atenção para os perigos que a derrubada repentina da monarquia e a adoção de princípios administrativos abstratos e que nunca haviam sido testados na prática ofereciam para a França. O sombrio vaticínio de Burke seria confirmado pelos sangrentos eventos de 1793, pelo corrupto e repressivo governo do diretório e - por fim - pela ditadura napoleônica, primeira ocasião histórica em que um só homem pôde, por seus delírios, jogar xadrez com boa parte da humanidade. 
Se examinarmos a experiência histórica da revolução francesa à luz das nossas questões atuais (especialmente no Brasil), penso que dela muitas lições podem ser extraídas. A primeira delas diz respeito às dificuldades decorrentes da adoção de princípios abstratos para a organização jurídica da sociedade, fazendo tábula rasa da tradição e das particularidades culturais de cada país. Com efeito, a história constitucional brasileira oferece uma galeria de experimentos legislativos desastrados (especialmente ao longo da república) devido à sanha de copiar modelos abstratos de origem estrangeira. A segunda - diretamente ligada à primeira - se manifesta na tendência dos governantes a aplicar de maneira autoritária essas normas, criando situações que de muitas maneiras se assemelham à ditadura jacobina, na qual uma espécie de lumpen-intelligentsia assumiu para si a missão de "forçar os cidadãos a serem livres" por meio da obediência incondicional a um conjunto de normas abstratas. 
Por fim, a atual tendência tanto dos meios de comunicação quanto de determinados setores da sociedade para buscar um "salvador da pátria" que corrija a desorganização gerada por um sistema jurídico mal concebido muito se assemelha à evolução política do "Abade" Sieyès, que de arauto da democracia passou a artífice da ditadura napoleônica. 
Evitando repetir os erros do passado e adotando uma política de estudo aprofundado dos costumes e aspirações reais do povo de nosso país, penso que podemos fazer uma leitura mais interessante da revolução francesa, compreendendo que seu desenlace violento estava enraizado na ingenuidade de alguns e na má fé de outros de seus principais atores, que desconheciam a vida do povo e careciam de experiência política para resolver de maneira criativa e construtiva os problemas que a época colocava. É por essas razões que penso que, para nós, defensores da liberdade, o 14 de julho não é data digna de comemoração. 

Thursday, July 4, 2013

Reflexões sobre o 4 de julho

            No ano de 1842, um juiz de direito estadunidense entrevistou um veterano da guerra de independência – que ,àquela época, contava noventa anos de idade – e indagou o motivo pelo qual este se havia engajado naquela sangrenta luta. Como resposta, o veterano respondeu que nunca havia tido contato com nenhuma doutrina política liberal, mas que ele e sua comunidade sempre haviam governado a si próprios e, a partir de um certo momento, o governo inglês decidiu que eles não mais poderiam fazê-lo (o episódio é narrado no excelente “Guia Politicamente Incorreto da História Americana”, de Thomas Woods). A partir disso, é válido levantarmos uma reflexão a respeito do significado do 4 de julho: politicamente, qual a lição mais preciosa que a independência americana nos legou? Numa primeira e abstrata abordagem podemos dizer que nela a liberdade e a democracia tiveram um de seus momentos mais brilhantes na história. Mas por quê?
            A fala do velho veterano nos dá uma pista importante: a criação dos Estados Unidos da América como país independente não foi motivada pela ânsia de implantação de grandes reformas políticas, muito menos para criar um novo tipo de homem, mas simplesmente para preservar uma situação de autogoverno da qual as treze colônias desfrutavam. A Constituição americana (ainda hoje em vigor) estabeleceu como regra básica a autogestão das pequenas comunidades, sendo que ao governo federal ficaram reservadas apenas aquelas tarefas que o indivíduo, a paróquia, o condado e o estado não podiam cumprir (como emissão de moeda nacional e política externa). Até mesmo o direito de separação da União era reservado aos estados originários.
            Desse modo, democracia e liberdade eram entendidas na América recém emancipada da metrópole britânica no sentido mais tarde formulado por Benjamin Constant em um texto clássico (“Da Liberdade dos Antigos comparada àquela dos Modernos”), ou seja, fundamentalmente como liberdade negativa, como conjunto de garantias fundamentais contra a ingerência do estado na vida privada. Dentre esses direitos fundamentais podemos citar o respeito à propriedade privada (com a vedação do confisco), a necessidade de consentimento dos interessados antes do estabelecimento de um tributo, liberdade de expressão, direito de ir e vir, etc. Utilizando de maneira livre a expressão cunhada pelo antropólogo francês Pierre Clastres, podemos dizer que a sociedade americana se organizou originariamente contra o estado.
            A grande questão que levantamos e cuja resposta é de importância decisiva para compreendermos nossa situação política atual e as tarefas que dela decorrem é “como pode uma sociedade se autogerir com um mínimo de interferência estatal?” A resposta pode ser encontrada como resultado de uma análise dos elementos que asseguraram a coesão social, a paz e a prosperidade dos Estados Unidos por tantos anos. Em primeiro lugar, deve-se colocar em evidência a unidade cultural em torno da fé cristã. Mesmo que no país não tenha havido uma Igreja predominante, os elementos básicos da profissão de fé em Cristo nortearam a fundação de todas as suas comunidades, especialmente a dignidade da pessoa humana com suas múltiplas ramificações: respeito à propriedade privada, caridade, espírito de poupança e boa gestão e valorização da família. Mencionamos também a influência relevante que entidades como a maçonaria e ideias iluministas (especialmente de John Locke e Montesquieu) exerceram na moldagem da sociedade americana pré-independência, dando destaque ao fato de que ali elementos cuja combinação degenerou em outra parte em violência ou – ao menos – em conflitos políticos foram integrados de maneira pacífica num edifício político e social harmonioso.
Em segundo lugar vimos ao longo da história americana o florescimento do empreendedorismo e da liberdade de mercado, que resultaram num quadro de predomínio do poder econômico sobre o poder político. Nesse ponto, diante da clássica tese marxista segundo a qual o poder político não passaria de um braço armado do poder econômico, é necessário abrirmos uma digressão.
            O elemento essencial do poder político é a coerção; segundo a conhecida definição do sociólogo Max Weber, o estado é um grupo de pessoas que detém o monopólio legítimo da força física. Se analisarmos a história dos povos até o surgimento do modo de produção capitalista, verificaremos sem dificuldade que o predomínio do poder político sobre o econômico foi a regra, com poucas exceções, que apenas a confirmam. Autores leais ao marxismo tradicional, como Gyorgy Lukács, ou desviantes da ortodoxia oficial, como Karl Wittfogel, foram levados diante dos fatos a reconhecer um “predomínio da superestrutura política sobre a infraestrutura econômica” nas sociedades antigas. Foi apenas com o surgimento do capitalismo que Marx pôde elaborar sua famosa fórmula segundo a qual “o estado é o comitê executivo da burguesia”. Contudo, conforme vimos, se aceitarmos essa explicação somos levados a considerar a maior parte da história humana como uma anomalia e apenas casos muito específicos como “normais” (a saber, estados capitalistas modernos onde os governantes ajam ostensivamente em benefício de determinados grupos de interesse).
            Mais sensata parece a explicação sugerida por Benjamin Constant e desenvolvida por uma plêiade de autores, dentre os quais mencionamos o economista austríaco Joseph Alois Schumpeter (“Imperialismo e Classes Sociais”). Segundo esses autores, o predomínio do poder político – baseado na coerção - sobre o econômico – baseado no contrato - significa o império da força sobre o consenso e teve como resultado histórico a destruição generalizada e irracional de seres humanos e bens economicamente produtivos. Basta pensarmos na quantidade de guerras absurdas travadas ao longo da história (se existe alguma guerra que não seja absurda....). A possibilidade de predomínio do poder econômico sobre o político surge apenas com o moderno capitalismo, no qual as energias que antigamente os homens empregavam na guerra e em disputas têm a possibilidade de ser realocadas em atividades mercantis. Assim, a destreza e a racionalidade humana passam – no capitalismo – a ter maior aptidão para servir à melhoria da qualidade de vida e a ingressar em relações regidas pelo acordo e respeito mútuo entre as partes. Parafraseando Constant  “o cumprimento espontâneo de um contrato é o respeito prestado à força do próximo”.
            Estudando essa possibilidade, vemos que os Estados Unidos foram criados com base no predomínio do poder econômico sobre o político, do consenso socialmente orquestrado em lugar da gigantesca força dos estados absolutistas europeus. Não é de se admirar que lá tenha surgido o terreno mais fértil do mundo para o florescimento do capitalismo e para a participação de todos os seus habitantes nos frutos da atividade econômica sem grandes convulsões internas. Com efeito, é lugar comum entre muitos historiadores conservadores americanos arrolar entre os presidentes mais bem sucedidos de seu país aqueles que menos interferiram nas atividades particulares e entre os mais desastrados aqueles com grandes planos de reforma social.

            O 4 de julho é, portanto, o símbolo da vitória desses princípios sobre o desejo de autoampliação do poder estatal tão bem ilustrado por Bertrand de Jouvenel em seu livro “Du Pouvoior”. Uma sociedade habituada a governar a si mesma e internamente dotada dos instrumentos para tal levantou armas e saiu vitoriosa contra uma metrópole ansiosa por tudo regular e por extrair – sem contrapartida – o fruto do trabalho de um povo. 

Monday, November 12, 2012

Sobre o Estado Laico

Movido pela insistência de reduzidos setores da sociedade brasileira, o MPF ingressou com um pedido de liminar visando retirar a expressão "Deus seja louvado" das cédulas de real. Tal iniciativa desencadeou nova onda de protestos contra a presença de objetos e frases que remetam ao cristianismo em repartições públicas e textos legais sob o argumento de que um estado laico não pode dar preferência a nenhum tipo de fé religiosa, mesmo que se trate daquela professada pela maioria esmagadora dos cidadãos.
Contudo, por trás desses argumentos, vejo que a ideia de estado laico é utilizada como cavalo de batalha, mas seu conteúdo não é bem explicitado pelos debatedores, muitas vezes movidos por intenções dolosas. Visando contribuir para colocar o debate em seus devidos eixos, proponho uma reflexão sobre a ideia de estado laico a partir de suas origens e de sua evolução históricas. 
Como sabemos, nos grandes impérios da antiguidade, o estado se organizava com base na religião e seu chefe era, ao mesmo tempo, sacerdote supremo, chegando por vezes a assumir status de divindade, como no caso do faraó egípcio. Na polis grega, a religião constituía instrumento de dominação política, sendo facilmente manipulada e alterada de acordo com as conveniências dos grupos dirigentes. Não é de se espantar que, no momento da fusão entre esses dois tipos de civilização antiga, da qual resultou o império helenístico, Alexandre o Grande não tenha enfrentado resistências por parte do povo ou dos chefes vencidos em se fazer reconhecer como deus. 
O surgimento da possibilidade de separação entre estado e religião ocorreu somente quando Nosso Senhor Jesus Cristo proferiu a famosa - e hoje mal compreendida - frase: "dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus". Como podemos entender esse preceito? Em primeiro lugar, no sentido de que o novo povo de Deus não deveria confrontar a autoridade romana constituída, que, àquela época, consistia em um engenhoso e estável edifício de estabilidade política. De outra parte, pela primeira vez na história fez-se uma delimitação do ponto até o qual a colaboração entre o fiel e o estado se deveria limitar: tal ponto consiste no caráter inviolável da consciência individual, verdadeiro sacrário dentro do qual se dá a relação mais íntima entre o indivíduo e Deus. A partir do momento em que o estado romano passou a exigir dos cristãos que prostituíssem suas consciências prestando culto à pessoa do imperador, a necessidade de resistência se fez presente, resultando em numerosos martírios. 
Com a queda do império romano, inaugurou-se uma situação histórica sui generis: a figura do estado praticamente desapareceu do mapa europeu, ficando a Igreja Católica como guardiã do patrimônio cultural acumulado pela Grécia e por Roma, o qual foi reelaborado com base nas verdades de fé reveladas e empregado no longo processo de conversão da população bárbara ao catolicismo, que durou cerca de novecentos anos. Como resultado desse processo, constatamos que a cristandade se erigiu em cultura comum de todo o povo europeu, de modo que, ao final da idade média, o conteúdo e a aplicação do direito  estavam intimamente integrados ao costume e ao imaginário popular.
Sem embargo das dificuldades enfrentadas no medievo para equilibrar o braço temporal do poder do papado - única instância capaz de realizar determinadas funções públicas naquele contexto - com sua função de guardião da fé (que, ao contrário do que muitos pensam, consiste em garantia da estabilidade do conteúdo da religião contra sua manipulação política, tão comum na antiguidade), o problema da delimitação entre as funções do estado e da Igreja só se agravou de maneira decisiva após o surgimento das monarquias absolutistas, que - conforme já sugerira Maquiavel - não tiveram escrúpulos em se apropriar da sofisticada estrutura institucional construída pela Igreja com a finalidade de subjugar seus povos. Com efeito, uma das grandes mentiras propagadas pelo senso comum historiográfico é aquela segundo a qual a Igreja teria sido a grande beneficiária do antigo regime quando, na verdade - no tocante à sua função essencial: a de evangelizar - foi uma de suas vítimas, ficando muitas vezes prejudicada por interesses políticos dos monarcas reinantes. Com efeito, o grande santo francês do século XVIII, São Luís Maria Grignion de Montfort, não era um frequentador da corte, mas um homem que levava fé e esperança para o povo pobre e necessitado. 
Não é de se espantar que os fundadores do primeiro - e até hoje mais sólido - estado laico da história, os founding fathers estadunidenses, sejam tributários de uma tradição inaugurada por um grupo de peregrinos que desejava viver sua fé e fugiu de um estado que se servia da religião de maneira espúria, como arma para travar conflitos políticos. A engenhosa solução elaborada pelos profundamente religiosos fundadores dos Estados Unidos foi a instituição de um estado que não interferisse de maneira alguma em questões religiosas (este é precisamente o conteúdo da primeira emenda à Constituição), circunscrevendo estas ao âmbito da vida cotidiana dos indivíduos. Desse modo, conforme notou Tocqueville, o exercício de qualquer atividade política nos EUA é aberto aos praticantes de qualquer fé; contudo, para ter chances de lograr êxito na eleição para um cargo público, o postulante deve exibir publicamente credenciais de sólida vida cristã.
Podemos concluir, a partir dessa breve descrição da experiência estadunidense, que um estado verdadeiramente laico e democrático é aquele cujas instituições são formalmente separadas dos agrupamentos religiosos, respeitando rigorosamente o princípio da isonomia entre seus cidadãos. Contudo, é preciso notar que o direito não é apenas composto pela norma em sentido formal, mas por um conteúdo culturalmente determinado pelo povo que rege. Por esse motivo, é natural que princípios de origem cristã sejam empregados na elaboração de muitas normas (como é o caso de boa parte daquelas referentes aos direitos humanos) bem como a presença de símbolos cristãos em repartições públicas onde o povo maciçamente professa tal fé. 
Penso que as experiências constitucionais estadunidense e brasileira resolveram de maneira satisfatória a questão do estado laico, garantindo o exercício democrático da liberdade religiosa e - ao mesmo tempo - permitindo que a fé majoritária se manifeste em símbolos e princípios que nos ligam à tradição da cultura ocidental. 

Wednesday, October 31, 2012

Karl Marx e o Currículo Escolar


           A figura de Karl Marx foi um espectro que rondou toda a minha vida escolar – desde o ensino fundamental até o superior. Especialmente nos cursos de ciências humanas, o conteúdo era basicamente moldado por ideias de cunho marxista, como luta de classes, dialética, relações sociais de produção, contradições entre forças produtivas e relações de produção, modo de produção, etc. No presente texto pretendo analisar brevemente a maneira como tais conceitos influíram no meu aprendizado em duas disciplinas das mais importantes: história e literatura (com repercussões também em redação).
            Em meu currículo escolar de história, a cronologia era interpretada com base na teoria dos modos de produção proposta por Marx na “Ideologia Alemã” e desenvolvida com maior detalhamento nos Grundrisse e no prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”, que tem como substrato a ideia de que o trabalho humano é o elemento fundante da vida e da cultura em todos os seus aspectos: formações econômicas pré-capitalistas, modo de produção feudal, modo de produção capitalista. A passagem de um modo de produção ao outro se dava quando as forças produtivas (compostas basicamente pelos instrumentos de trabalho e pelo próprio trabalhador) entravam em contradição com as relações sociais de produção (a organização social do trabalho). Todo o arcabouço cultural era interpretado em termos de uma relação dialética entre a estrutura (forças produtivas + relações de produção) e superestrutura (a roupagem ideológica que revestia as relações de domínio que organizavam o mundo do trabalho, especialmente o direito e as instituições políticas).
            A dialética marxista, diferentemente do procedimento heurístico de busca pela verdade empregado pela filosofia grega, concerne ao desenvolvimento conflituoso entre forma e conteúdo de categorias históricas e não de ideias assumidas por sujeitos humanos concretos. A passagem de um modo de produção ao outro era interpretada por Marx como um procedimento dialético, no qual a velha superestrutura lutava para se manter quando novas forças produtivas e relações de produção lutavam para vir à tona e se tornarem dominantes. Conforme argumentou Perry Anderson, em um dos livros que basearam as aulas que tive no ensino fundamental e médio (“Passagens da Antiguidade para o Feudalismo”), tanto o modo de produção oriental como o escravista antigo não permitiam uma acentuação do conflito entre forças produtivas e relações de produção, uma vez que aquelas não se desenvolviam por conta do entrave produzido pelo trabalho escravo, que não constituía incentivo para a aplicação da já sofisticada ciência antiga na produção de tecnologia, de modo que o fim do mundo antigo se deu pela destruição pura e simples por meio de guerras.
            A possibilidade de transformação revolucionária da história se deu apenas com o surgimento e desenvolvimento da burguesia (cuja formulação clássica foi dada por Marx em O Manifesto Comunista). Esta última venceu as amarras da tradição e, pela sua capacidade inovadora, desenvolveu as forças produtivas até níveis nunca antes vistos. Mas para se alçar a tais patamares, ela foi obrigada a desenvolver consigo o germe de sua destruição, a classe proletária, cujo trabalho explorava por meio de relações contratuais aparentemente justas, mas que ocultavam a extração de tempo de trabalho não remunerado: a mais valia.
            O espírito da análise marxiana norteou as explicações fornecidas nos cursos de humanas que freqüentei. Sua divisa mais clara é a 11ª tese contra Feuerbach: “Os filósofos não fizeram outra coisa senão interpretar o mundo, trata-se agora de transformá-lo”. Nesse sentido, a história contemporânea nos foi apresentada como a história da luta de classes entre burguesia e proletariado, e a grande angústia da qual compartilhávamos era aprender que todas as tentativas deste último para vencer a exploração daquela haviam sido derrotadas. Como jovens idealistas, pensávamos que nosso futuro era realizar a profecia – ainda não cumprida – de Karl Marx.
            Do ponto de vista brasileiro, a explicação marxiana fornecia dificuldades relevantes, pois vivemos em um país que não conheceu uma economia propriamente capitalista senão a partir da década de 1930 (e ainda de maneira muito tímida). Aqui, entre nós, como salientou Roberto Schwarz em um ensaio clássico, o problema não era econômico, mas o fato moral da escravidão. Assim, os autores de orientação marxista que povoam nossos livros didáticos (fundamentalmente Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Jacob Gorender) foram levados a promover criativas adaptações ao esquema evolucionista de desenvolvimento histórico dos modos de produção aventado por Marx. A primeira dificuldade foi o debate sobre a existência ou não do modo de produção feudal no Brasil; enquanto historiadores leais ao Partido Comunista Brasileiro, como Nelson Werneck Sodré, fincavam pé na ideia da existência de feudalismo no Brasil, a solução marxista mais criativa foi fornecida por Jacob Gorender, para quem não teria havido feudalismo, mas um modo de produção sui generis denominado “escravismo colonial” cuja diferença específica em relação ao escravismo antigo seria sua inserção no processo de acumulação originária do capital, descrito por Marx no capítulo XXIII de sua obra magna. Sobre este conceito é necessário dizer algumas palavras. Segundo Marx, o desenvolvimento do modo de produção capitalista teve como condição de possibilidade um “pecado original”, que consistiu na separação entre trabalhadores rurais e forças produtivas (a dizimação do pequeno proprietário rural medieval), levando os camponeses despojados para as cidades na condição de fornecedores de mão de obra barata para a manufatura. Paralelamente a esse processo, ocorrera o saque sistemático das riquezas da América, África e Ásia pelas potências coloniais, fato que teria possibilitado o grande acúmulo de capital necessário para a largada da revolução industrial inglesa, no século XVIII.
            Segundo a maior parte dos historiadores marxistas brasileiros, o grande entrave ao desenvolvimento de nosso país seria precisamente a persistência da organização produtiva montada pelo processo de acumulação originária entre nós e que tinha no escravismo sua pedra angular. Segundo Florestan Fernandes e Celso Furtado, a passagem da economia brasileira escravista para o capitalismo se dera – ao contrário do contexo europeu – num cenário de contrarrevolução e criação de um capitalismo de economia dependente dos grandes centros: de alvo da acumulação primitiva, passávamos, ato contínuo, à condição de país dependente, governado por uma “autocracia burguesa” (Florestan Fernandes), marcada por seu autoritarismo e por um projeto de modernização conservadora, que preservava o arcaico ao mesmo tempo em que introduzia traços da modernidade.
            A análise dessa suposta relação de dependência foi feita entre nós também no âmbito da crítica literária por autores que incorporaram o instrumental teórico marxista, notadamente Antônio Cândido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Paulo Eduardo Arantes. É possível dizer que o tema central da reflexão desses autores é a formação da literatura brasileira num contexto de capitalismo dependente. Sabemos que a ideia de formação (Bildung) foi empregada por Antônio Cândido a partir de sua leitura dos clássicos do iluminismo alemão, fundamentalmente Schiller e Goethe, que pensaram o problema da formação do indivíduo na modernidade, processo marcado por uma dialética conflituosa entre a afirmação do eu e as estruturas sociais cambiantes no sentido de uma sociedade burguesa, não mais ancorada na tradição, mas na autonomia individual (nunca é demais lembrar que o próprio Karl Marx foi profundamente influenciado por essas formulações). Também cabe colocar em destaque a influência exercida pelo maior dos críticos literários marxistas sobre as reflexões de Cândido, Schwarz, Bosi e Arantes: falamos do húngaro Gyorgy Lukács, autor de importantes textos sobre o realismo, concebido por ele não como um simples movimento literário, mas como um procedimento de reflexo estético tradutor para a linguagem literária da dialética que permeia a vida social e os conflitos individuais (analisados por Marx em termos filosóficos, econômicos e sociológicos). Segundo Lukács – no que seguem nossos críticos – a forma literária romance seria típica da modernidade burguesa, tempo em que a posição do protagonista é ambígua, conflituosa e não se resolve com a integração deste na sociedade, como se dava nas formas literárias típicas das culturas fechadas (pré-capitalistas). Essa situação do homem moderno seria solidária ao desenvolvimento da forma mercadoria, que estabelece relações impessoais entre os homens através da mediação do valor de troca.
            No caso brasileiro, a forma romance enfrentou sérias dificuldades para se afirmar, segundo Schwarz, especialmente devido à permanência das relações paternalistas de favor como mediação fundamental das relações sociais. Aqui, o ideário liberal-burguês desempenhava a função de ideias fora do lugar, contribuindo para legitimar um quadro arcaico marcado pela escravidão e pelo patriarcalismo. Por essa razão, a forma mercadoria estava longe de permear nossas relações sociais no momento em que surgiram os primeiros grandes romancistas brasileiros: José de Alencar e Machado de Assis. O resultado dessa configuração foi a exibição de um quadro caricato da modernidade, que permitiu aos nossos mestres do romance desvendar o aspecto ideológico do pensamento liberal, que em seu centro (a Europa) parecia científico e verdadeiro. Por trás do capitalista, dos contratos, da pessoa livre, dos negócios, surgia na sombra o arcaico, a cultura do favor, a escravidão, o atraso. Girando fora de seu eixo, as ideias fundadoras da modernidade capitalista mostrariam no Brasil de Machado, como na Rússia de Dostoievsky, sua face perversa e opressora. 

Saturday, November 12, 2011

A Polícia e a Universidade


Como aluno da USP por três anos e da Unicamp por quatro, sinto-me no dever de manifestar algumas opiniões sobre a presença da polícia nos principais campi das duas universidades e tentar desfazer algumas ideias superficiais sobre o tema.
            Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que existe uma grave onda de criminalidade assolando tanto o entorno quanto a parte interna de ambos os campi; especialmente assaltos, estupros e tráfico de drogas. Diante desse quadro, delineiam-se apenas duas soluções: a primeira seria a aquisição de armas de fogo por parte de alunos, professores e funcionários, complementada pelo necessário treinamento para seu uso em situações nas quais a autodefesa se fizer necessária. A segunda seria contar com uma força auxiliar especialmente treinada para coibir atos criminosos: a polícia militar ou uma guarda universitária devidamente equipada e treinada para enfrentar criminosos. A partir de um rápido exame das duas alternativas, logo vemos que apenas a segunda é viável na atual conjuntura.
Mas aqui já surge uma questão importante: onde seriam recrutados os integrantes dessa guarda e quem lhes daria treinamento? Resposta: sua formação seria muito próxima à da Polícia Militar, acrescentando-se que levaria um lapso de tempo considerável, dentro do qual muitos outros crimes podem vir a acontecer. Outras soluções também foram aventadas, como aumentar a iluminação nas ruas, o que é, sem dúvida, necessário, mas não afasta a criminalidade por si só. Delinquentes não são vampiros, mas pessoas violentas, que só podem ser afastadas pelo emprego da força física.
Outra dificuldade de relevo está na reação de setores (minoritários) da comunidade acadêmica à presença da polícia no interior da universidade. Os argumentos desses grupos possuem nuances variadas, mas podem ser resumidos em três fatores interdependentes: 1) a polícia militar é violenta e cria mais insegurança dentro do campus; 2) o objetivo da polícia é perseguir o consumidor recreativo de drogas; 3) a simples presença da polícia fere a autonomia da universidade, que deve ser concebida como um “espaço livre” de organização dos estudantes.
Examinemos cada um desses argumentos. O primeiro deles é, sem dúvida, uma falácia inaceitável vinda de grupos que se outorgam forte autoridade científica no campo das ciências humanas e assumem a tarefa de combater a proliferação de preconceitos dentro da sociedade. Todos sabemos que a quantidade de crimes cometidas por policiais é relevante, mas é importante notar que, ainda assim, trata-se de uma minoria de maus profissionais, que deve ser combatida por meio de órgãos de controle, como uma ouvidoria designada para receber reclamações de alunos, professores e funcionários em casos de irregularidades. Outro ponto importante que não pode passar despercebido é que os policiais são, antes de mais nada, trabalhadores, cujas condições de trabalho são extremamente penosas, incluindo, muitas vezes, a colocação diária da vida em risco. Portanto, não é aceitável que críticos da precarização do trabalho e defensores da emancipação do trabalhador virem as costas para esse importante grupo social, substituindo a ação solidária – que inclui sua incorporação fraternal na comunidade acadêmica por meio da participação na vida cotidiana, nos eventos e festas – por rosnados e demonstrações de antipatia.
Quanto ao segundo ponto, a suposta perseguição aos usuários recreativos de drogas, é necessário esclarecer que o uso de drogas no interior da universidade não é apenas um problema episódico, mas deve ser assumido por toda a comunidade como um mal a ser combatido. Quando o consumo é elevado – mostra a economia mais elementar – o fornecedor corre a atender o usuário e é exatamente isso que verificamos diariamente dentro do campus com a entrada maciça de entorpecentes provenientes de bairros vizinhos de ambas as universidades. Mais ainda, existe uma afinidade “ecológica” (para usar um termo da escola de Chicago) entre os diferentes tipos de crimes praticados nas cercanias e no interior da Cidade Universitária; não raro são as mesmas pessoas que roubam, estupram e traficam. Ora, se assim é, o usuário não pode deixar de ser “perturbado” de algum modo e, logicamente, é preferível que o seja pela polícia e não por criminosos. Vale lembrar que a lei 11.343 considera o consumo e o porte de drogas como infrações de menor potencial ofensivo e que as penalidades previstas variam entre levar um “pito” do juiz e a prestação de serviços comunitários; mas um efeito importante desse dispositivo – frequentemente negligenciado pelos leitores apressados –é que a polícia tem o dever funcional de desfazer o ato criminoso quando o presencia e tomar providências contra o infrator, mesmo que elas sejam brandas. Outro ponto importante a recordar é que para se realizar a prisão em flagrante no caso de tráfico não é necessário mandado judicial, o que afasta boa parte das queixas que alegam arbitrariedade em ações policiais. Caso essas venham a ocorrer, repito, deve haver um órgão competente para delas tomar conhecimento e, se for o caso, punir os responsáveis.
Por fim, a questão da autonomia universitária. A dificuldade nesse tema reside no conteúdo propositadamente vago atribuído a essa expressão e que – devido à sua indefinição – se presta facilmente a todo tipo de manipulação e distorção. Desde 1968 criou-se o mito (no sentido de Georges Sorel em “Reflexões sobre a Violência”: como evocação antes de qualquer análise reflexiva, de uma massa de sentimentos) de que a ocupação de espaços públicos por parte de estudantes, interrompendo as atividades normais neles praticadas, é algo “bom em si” e requisito fundamental para a proliferação de debates democráticos. Diante disso, o adversário natural é aquele que supostamente impede a ocupação: a polícia. Mas examinemos algumas dificuldades suscitadas pelo tema. Primeiramente, em ambientes democráticos a ocupação deve ser empregada como último recurso quando as vias ordinárias estejam bloqueadas e – no caso em tela – o movimento estudantil atual, dominado por partidos políticos que a ele impõem agendas formuladas fora da universidade, tem demonstrado uma gigantesca apatia em suscitar debates frutíferos de onde poderiam nascer reivindicações consistentes por parte dos estudantes. Falo, sobretudo, da reforma das grades disciplinares e de suas implicações (quais temas devem ser incluídos ou modificados no conteúdo das disciplinas? Que tipo de profissionais seriam necessários para fazê-lo? Como melhorar a integração entre universidade e sociedade?). Para compreender por que isso ocorre, passemos ao segundo aspecto da questão: o partidarismo inveterado do movimento estudantil. Basta olharmos a história do movimento comunista desde finais do século XIX para verificar a existência de dois fatores solidários que norteiam sua atuação. O primeiro é a identificação de um inimigo mediato (o capital) e de um inimigo imediato (governo, patrões, instituições, etc..) contra os quais a luta da militância se deve dirigir; como o inimigo mediato não é palpável, sua atuação deve ser combatida enquanto materializada nas ações dos inimigos imediatos. O segundo é a formação de coalizões para levar esse combate a cabo, materializada pelas políticas de “frente ampla”. Voltando para nosso cenário atual, verificamos que a frente ampla do movimento estudantil é sempre formada com os sindicatos de funcionários promotores de greves, identificados como setores avançados e progressistas da comunidade universitária.
Mas esse caráter progressista mesmo deve ser colocado em questão. A reivindicação mais freqüente dos funcionários é o aumento salarial, temperado pela exigência de mudanças nas condições de trabalho. Sem entrar no mérito de cada campanha em particular, mas examinando a maneira como essas demandas são formuladas nos jornais publicados por sindicatos e movimento estudantil verificamos freqüentes distorções e provas de desconhecimento sobre legislação administrativa, lei orçamentária e organização da carreira no serviço público; distorções efetuadas com a finalidade de simplificar questões complexas e concentrar a culpa em algum bode expiatório (reitor, governador, polícia, etc..).
Se o caráter progressista dos blocos de reivindicações formados por estudantes e funcionários pode ser colocado em questão (e, uma vez que toma como palavras de ordem ideias vagas e alheias à realidade, com certeza pode)os atos de ocupação por eles praticados em nome desses blocos também tem sua “bondade em si” colocada em xeque. Muitas vezes as vias ordinárias abertas pela democracia para a discussão e solução dessas questões não são sequer invocadas, devido ao seu desconhecimento ou à simples malícia.
Com isso, vemos que a concepção corrente de autonomia universitária é bastante distorcida e eventuais ações policiais para inibir atos de ocupação (respaldados por decisão judicial, como ocorreu na USP) não podem ser encarados como afronta à liberdade dos alunos, mas, ao contrário, como ações necessárias para o funcionamento normal e democrático da universidade, que pressupõe a atuação de todos os seus órgãos. O interesse em manter a polícia longe da universidade só serve, assim, àqueles que desejam ver os centros produtores de conhecimento como uma cabala, isolados de parte importante da sociedade e de cujo interior só se ouvem palavras ininteligíveis, intercaladas com gritos de “socorro!”. 

Wednesday, September 7, 2011

O Sentido do 7 de setembro

Conforme demonstrou o historiador Mircea Eliade, em seu ensaio clássico "O Sagrado e o profano", uma característica comum a todas as sociedades primitivas é a reprodução periódica de seu ato de fundação, encenado conforme o roteiro de um mito transmitido desde um passado remoto. Desse ritual, em que tomava parte toda a comunidade, dependia a sobrevivência e a prosperidade da mesma, motivo pelo qual ele não podia deixar de acontecer, sob pena de motivar a ira dos deuses.
Empregando uma analogia com as sociedades secularizadas do século XXI, notamos que a quase totalidade dos países do globo terrestre apresentam anualmente algum tipo de espetáculo em memória de seu ato de fundação, especialmente quando este se deu mediante a forma de declaração de independência. A mensagem social difundida por esses eventos é a reafirmação presente dos princípios e ideias sob cuja inspiração se fundaram os países em questão. 
Se pensarmos no caso brasileiro, quais foram os princípios e ideias que formaram nosso país? Segundo o crítico Roberto Schwarz, a marca característica do pensamento que deu origem às nossas instituições é que ele operava conforme um mecanismo de deslocamento que poderia ser designado pela expressão "as ideias fora do lugar". A gênese desse quadro se explica pela adoção de princípios liberais e democráticos europeus em uma sociedade marcada pela escravidão e pelo predomínio das relações de clientela e favorecimento no serviço público, de modo que os princípios que exerceram uma função contestadora e revolucionária em solo europeu aqui não serviram para nada mais que revestir com uma aparência legítima e moderna um conjunto de relações que atravancam o progresso. 
Passados quase dois séculos de nossa independência, parece que continuamos a sofrer os efeitos das ideias fora do lugar: o republicanismo, a democracia, a constituição dirigente e suas as várias formas de garantias se deslocam como pretexto para o agigantamento do estado (e, consequentemente, da corrupção) na mesma medida em que permanecem em grande medida inefetivos na prática. Perplexa diante desse quadro, boa parte da opinião pública e das classes letradas brasileiras jogam a culpa desse estado de coisas na classe política, esquecendo que ele resulta de um caldo cultural que provém mais de nossa formação como país do que de um grupo de pessoas que nos governa de maneira predatória, corrupta e inadequada. Dependendo cada vez mais do estado para impulsionar seu padrão de vida (haja vista a quantidade de pessoas empregadas, ou que almeja um emprego, no serviço público), o brasileiro médio se rebela hoje contra a corrupção como um cliente que se queixa de um serviço mal prestado e não como o produtor justamente indignado contra aquele que tolhe os frutos de seu trabalho. Daí a resposta para a pergunta tão difundida: "por que no Brasil ninguém se rebela contra a corrupção?" 
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que os males que experimentamos hoje em matéria de política são ainda os ecos de nossa ambígua formação nacional, que agrupou sob uma imagem moderna os problemas não resolvidos de nosso passado clientelista. Em face disso, cabe a pergunta: em nome do que vale a pena celebrarmos o 7 de setembro? 

Thursday, August 18, 2011

A Pedagogia de Haddad


Para quem esperava uma discussão sobre os rumos da educação no Brasil, o debate dos alunos do Largo São Francisco com o ministro Fernando Haddad, realizado na última terça feira, deixou muito a desejar. O convidado claramente esperava uma chuva de louvores, mesclados com poucos ataques frontais desferidos por frações radicais do movimento estudantil, para os quais ele já dispõe de respostas prontas; mas não esperava ter de prestar contas sobre assuntos vitais, como a preocupante expansão do analfabetismo funcional entre a população escolarizada de nosso país.
Pensando nessa questão, elaborei uma pergunta partindo do fato evidente – e louvável – de que os governos Lula e Dilma vem aumentando substancialmente os investimentos em educação básica e superior. Todavia, meu questionamento se concentrou na maneira como esses recursos são atualmente empregados: basicamente no incremento da infraestrutura e na contratação de pessoal, assim como na inclusão de disciplinas como filosofia e sociologia no currículo do ensino médio. Guardando esses dados, voltemos ao problema do analfabetismo funcional, indagando sobre suas causas; o analfabeto funcional é aquele que sabe ler, mas não entende o que lê, não sabe interpretar um texto. As causas dessa deficiência podem ser agrupadas sob três categorias: falta de raciocínio lógico, falta de domínio da língua e pobreza de recursos imaginativos. Como combater esses três fatores? A resposta é simples: incluir (ou melhorar) disciplinas de currículo básico que desenvolvam essas qualidades. Para o raciocínio lógico, um curso de lógica elementar (como havia no currículo até os anos 40) e não essa matemática altamente sofisticada que se ensina no colégio nem, tampouco, cursos de sociologia e filosofia, cujos arcabouços conceituais são tão complexos e controversos que nem mesmo um grande especialista consegue defini-los com segurança; para o domínio da língua, uma maior valorização da gramática normativa, talvez com a adoção de manuais clássicos, que sempre obtiveram ótimos resultados; por fim, para o incremento de recursos imaginativos, um maior incentivo à leitura de clássicos da literatura brasileira e portuguesa (hoje em dia lê-se muito pouco entre os jovens e literatura de quinta categoria, ninguém mais lê Camões, Antonio Vieira, Camilo Castelo Branco, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, etc...). Em síntese, questionei o ministro sobre o por que de nada disso estar sendo feito.
Espantado com o questionamento, ele tergiversou, num primeiro momento reconheceu a qualidade da pergunta, mas, logo em seguida, disse que tratava-se de uma questão financeira, que estava aumentando os investimentos em ensino básico e que a escolaridade brasileira já é melhor que a da Argentina (escolaridade meramente quantitativa, pois basta comparar o domínio da língua e da literatura de um jovem argentino com um brasileiro para constatar nossa vergonhosa desvantagem). Disse também que eu estava separando ensino primário e ensino superior, o que não fazia sentido, pois deve-se ter uma visão integrada dos dois (coisa estranha quando todos sabemos que há um abismo de distância entre os conteúdos de ensino médio e de ensino superior, não raro sendo aqueles totalmente descartados pelos alunos quando entram na universidade).
Depois disso, Haddad chamou a atenção para a importância das lutas estudantis, dizendo que devemos cobrar cada vez mais melhorias na qualidade do ensino. Mas, ora bolas, se nem ele mesmo sabe qual é o conteúdo dessas mudanças, o que é um ensino de qualidade, quais os planos de ação que devem ser empregados para atingir essa finalidade, qual é o sentido dessa luta? Por tudo que foi dito, a única resposta possível é: exigir mais recursos para a educação. Realizou-se, portanto, aquilo que temíamos e criticávamos nos governos anteriores: o MEC se tornou uma sucursal do ministério do planejamento