No ano de 1842, um juiz de direito
estadunidense entrevistou um veterano da guerra de independência – que ,àquela
época, contava noventa anos de idade – e indagou o motivo pelo qual este se havia engajado naquela sangrenta luta. Como resposta, o veterano respondeu
que nunca havia tido contato com nenhuma doutrina política liberal, mas que ele
e sua comunidade sempre haviam governado a si próprios e, a partir de um certo
momento, o governo inglês decidiu que eles não mais poderiam fazê-lo (o episódio
é narrado no excelente “Guia Politicamente Incorreto da História Americana”, de
Thomas Woods). A partir disso, é válido levantarmos uma reflexão a respeito do
significado do 4 de julho: politicamente, qual a lição mais preciosa que a
independência americana nos legou? Numa primeira e abstrata abordagem podemos
dizer que nela a liberdade e a democracia tiveram um de seus momentos mais
brilhantes na história. Mas por quê?
A fala do velho veterano nos dá uma
pista importante: a criação dos Estados Unidos da América como país
independente não foi motivada pela ânsia de implantação de grandes reformas
políticas, muito menos para criar um novo tipo de homem, mas simplesmente para
preservar uma situação de autogoverno da qual as treze colônias desfrutavam. A
Constituição americana (ainda hoje em vigor) estabeleceu como regra básica a
autogestão das pequenas comunidades, sendo que ao governo federal ficaram
reservadas apenas aquelas tarefas que o indivíduo, a paróquia, o condado e o
estado não podiam cumprir (como emissão de moeda nacional e política externa).
Até mesmo o direito de separação da União era reservado aos estados
originários.
Desse modo, democracia e liberdade
eram entendidas na América recém emancipada da metrópole britânica no sentido
mais tarde formulado por Benjamin Constant em um texto clássico (“Da Liberdade
dos Antigos comparada àquela dos Modernos”), ou seja, fundamentalmente como
liberdade negativa, como conjunto de garantias fundamentais contra a ingerência
do estado na vida privada. Dentre esses direitos fundamentais podemos citar o
respeito à propriedade privada (com a vedação do confisco), a necessidade de
consentimento dos interessados antes do estabelecimento de um tributo,
liberdade de expressão, direito de ir e vir, etc. Utilizando de maneira livre a
expressão cunhada pelo antropólogo francês Pierre Clastres, podemos dizer que a
sociedade americana se organizou originariamente contra o estado.
A grande questão que levantamos e
cuja resposta é de importância decisiva para compreendermos nossa situação
política atual e as tarefas que dela decorrem é “como pode uma sociedade se
autogerir com um mínimo de interferência estatal?” A resposta pode ser
encontrada como resultado de uma análise dos elementos que asseguraram a coesão
social, a paz e a prosperidade dos Estados Unidos por tantos anos. Em primeiro
lugar, deve-se colocar em evidência a unidade cultural em torno da fé cristã.
Mesmo que no país não tenha havido uma Igreja predominante, os elementos
básicos da profissão de fé em Cristo nortearam a fundação de todas as suas
comunidades, especialmente a dignidade da pessoa humana com suas múltiplas
ramificações: respeito à propriedade privada, caridade, espírito de poupança e
boa gestão e valorização da família. Mencionamos também a influência relevante
que entidades como a maçonaria e ideias iluministas (especialmente de John
Locke e Montesquieu) exerceram na moldagem da sociedade americana
pré-independência, dando destaque ao fato de que ali elementos cuja combinação
degenerou em outra parte em violência ou – ao menos – em conflitos políticos foram
integrados de maneira pacífica num edifício político e social harmonioso.
Em
segundo lugar vimos ao longo da história americana o florescimento do
empreendedorismo e da liberdade de mercado, que resultaram num quadro de
predomínio do poder econômico sobre o poder político. Nesse ponto, diante da clássica
tese marxista segundo a qual o poder político não passaria de um braço armado
do poder econômico, é necessário abrirmos uma digressão.
O elemento essencial do poder
político é a coerção; segundo a conhecida definição do sociólogo Max Weber, o
estado é um grupo de pessoas que detém o monopólio legítimo da força física. Se
analisarmos a história dos povos até o surgimento do modo de produção
capitalista, verificaremos sem dificuldade que o predomínio do poder político sobre
o econômico foi a regra, com poucas exceções, que apenas a confirmam. Autores
leais ao marxismo tradicional, como Gyorgy Lukács, ou desviantes da ortodoxia
oficial, como Karl Wittfogel, foram levados diante dos fatos a reconhecer um
“predomínio da superestrutura política sobre a infraestrutura econômica” nas
sociedades antigas. Foi apenas com o surgimento do capitalismo que Marx pôde
elaborar sua famosa fórmula segundo a qual “o estado é o comitê executivo da
burguesia”. Contudo, conforme vimos, se aceitarmos essa explicação somos
levados a considerar a maior parte da história humana como uma anomalia e
apenas casos muito específicos como “normais” (a saber, estados capitalistas
modernos onde os governantes ajam ostensivamente em benefício de determinados
grupos de interesse).
Mais sensata parece a explicação
sugerida por Benjamin Constant e desenvolvida por uma plêiade de autores,
dentre os quais mencionamos o economista austríaco Joseph Alois Schumpeter
(“Imperialismo e Classes Sociais”). Segundo esses autores, o predomínio do
poder político – baseado na coerção - sobre o econômico – baseado no contrato -
significa o império da força sobre o consenso e teve como resultado histórico a
destruição generalizada e irracional de seres humanos e bens economicamente
produtivos. Basta pensarmos na quantidade de guerras absurdas travadas ao longo
da história (se existe alguma guerra que não seja absurda....). A possibilidade
de predomínio do poder econômico sobre o político surge apenas com o moderno
capitalismo, no qual as energias que antigamente os homens empregavam na guerra
e em disputas têm a possibilidade de ser realocadas em atividades mercantis.
Assim, a destreza e a racionalidade humana passam – no capitalismo – a ter
maior aptidão para servir à melhoria da qualidade de vida e a ingressar em
relações regidas pelo acordo e respeito mútuo entre as partes. Parafraseando
Constant “o cumprimento espontâneo de um
contrato é o respeito prestado à força do próximo”.
Estudando essa possibilidade, vemos
que os Estados Unidos foram criados com base no predomínio do poder econômico
sobre o político, do consenso socialmente orquestrado em lugar da gigantesca
força dos estados absolutistas europeus. Não é de se admirar que lá tenha
surgido o terreno mais fértil do mundo para o florescimento do capitalismo e
para a participação de todos os seus habitantes nos frutos da atividade
econômica sem grandes convulsões internas. Com efeito, é lugar comum entre
muitos historiadores conservadores americanos arrolar entre os presidentes mais
bem sucedidos de seu país aqueles que menos interferiram nas atividades
particulares e entre os mais desastrados aqueles com grandes planos de reforma
social.
O 4 de julho é, portanto, o símbolo
da vitória desses princípios sobre o desejo de autoampliação do poder estatal
tão bem ilustrado por Bertrand de Jouvenel em seu livro “Du Pouvoior”. Uma
sociedade habituada a governar a si mesma e internamente dotada dos
instrumentos para tal levantou armas e saiu vitoriosa contra uma metrópole
ansiosa por tudo regular e por extrair – sem contrapartida – o fruto do
trabalho de um povo.
"O melhor governo é o que governa menos"- Thoreau, Henry David: A desobediência Civil
ReplyDelete