Saturday, November 12, 2011

A Polícia e a Universidade


Como aluno da USP por três anos e da Unicamp por quatro, sinto-me no dever de manifestar algumas opiniões sobre a presença da polícia nos principais campi das duas universidades e tentar desfazer algumas ideias superficiais sobre o tema.
            Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que existe uma grave onda de criminalidade assolando tanto o entorno quanto a parte interna de ambos os campi; especialmente assaltos, estupros e tráfico de drogas. Diante desse quadro, delineiam-se apenas duas soluções: a primeira seria a aquisição de armas de fogo por parte de alunos, professores e funcionários, complementada pelo necessário treinamento para seu uso em situações nas quais a autodefesa se fizer necessária. A segunda seria contar com uma força auxiliar especialmente treinada para coibir atos criminosos: a polícia militar ou uma guarda universitária devidamente equipada e treinada para enfrentar criminosos. A partir de um rápido exame das duas alternativas, logo vemos que apenas a segunda é viável na atual conjuntura.
Mas aqui já surge uma questão importante: onde seriam recrutados os integrantes dessa guarda e quem lhes daria treinamento? Resposta: sua formação seria muito próxima à da Polícia Militar, acrescentando-se que levaria um lapso de tempo considerável, dentro do qual muitos outros crimes podem vir a acontecer. Outras soluções também foram aventadas, como aumentar a iluminação nas ruas, o que é, sem dúvida, necessário, mas não afasta a criminalidade por si só. Delinquentes não são vampiros, mas pessoas violentas, que só podem ser afastadas pelo emprego da força física.
Outra dificuldade de relevo está na reação de setores (minoritários) da comunidade acadêmica à presença da polícia no interior da universidade. Os argumentos desses grupos possuem nuances variadas, mas podem ser resumidos em três fatores interdependentes: 1) a polícia militar é violenta e cria mais insegurança dentro do campus; 2) o objetivo da polícia é perseguir o consumidor recreativo de drogas; 3) a simples presença da polícia fere a autonomia da universidade, que deve ser concebida como um “espaço livre” de organização dos estudantes.
Examinemos cada um desses argumentos. O primeiro deles é, sem dúvida, uma falácia inaceitável vinda de grupos que se outorgam forte autoridade científica no campo das ciências humanas e assumem a tarefa de combater a proliferação de preconceitos dentro da sociedade. Todos sabemos que a quantidade de crimes cometidas por policiais é relevante, mas é importante notar que, ainda assim, trata-se de uma minoria de maus profissionais, que deve ser combatida por meio de órgãos de controle, como uma ouvidoria designada para receber reclamações de alunos, professores e funcionários em casos de irregularidades. Outro ponto importante que não pode passar despercebido é que os policiais são, antes de mais nada, trabalhadores, cujas condições de trabalho são extremamente penosas, incluindo, muitas vezes, a colocação diária da vida em risco. Portanto, não é aceitável que críticos da precarização do trabalho e defensores da emancipação do trabalhador virem as costas para esse importante grupo social, substituindo a ação solidária – que inclui sua incorporação fraternal na comunidade acadêmica por meio da participação na vida cotidiana, nos eventos e festas – por rosnados e demonstrações de antipatia.
Quanto ao segundo ponto, a suposta perseguição aos usuários recreativos de drogas, é necessário esclarecer que o uso de drogas no interior da universidade não é apenas um problema episódico, mas deve ser assumido por toda a comunidade como um mal a ser combatido. Quando o consumo é elevado – mostra a economia mais elementar – o fornecedor corre a atender o usuário e é exatamente isso que verificamos diariamente dentro do campus com a entrada maciça de entorpecentes provenientes de bairros vizinhos de ambas as universidades. Mais ainda, existe uma afinidade “ecológica” (para usar um termo da escola de Chicago) entre os diferentes tipos de crimes praticados nas cercanias e no interior da Cidade Universitária; não raro são as mesmas pessoas que roubam, estupram e traficam. Ora, se assim é, o usuário não pode deixar de ser “perturbado” de algum modo e, logicamente, é preferível que o seja pela polícia e não por criminosos. Vale lembrar que a lei 11.343 considera o consumo e o porte de drogas como infrações de menor potencial ofensivo e que as penalidades previstas variam entre levar um “pito” do juiz e a prestação de serviços comunitários; mas um efeito importante desse dispositivo – frequentemente negligenciado pelos leitores apressados –é que a polícia tem o dever funcional de desfazer o ato criminoso quando o presencia e tomar providências contra o infrator, mesmo que elas sejam brandas. Outro ponto importante a recordar é que para se realizar a prisão em flagrante no caso de tráfico não é necessário mandado judicial, o que afasta boa parte das queixas que alegam arbitrariedade em ações policiais. Caso essas venham a ocorrer, repito, deve haver um órgão competente para delas tomar conhecimento e, se for o caso, punir os responsáveis.
Por fim, a questão da autonomia universitária. A dificuldade nesse tema reside no conteúdo propositadamente vago atribuído a essa expressão e que – devido à sua indefinição – se presta facilmente a todo tipo de manipulação e distorção. Desde 1968 criou-se o mito (no sentido de Georges Sorel em “Reflexões sobre a Violência”: como evocação antes de qualquer análise reflexiva, de uma massa de sentimentos) de que a ocupação de espaços públicos por parte de estudantes, interrompendo as atividades normais neles praticadas, é algo “bom em si” e requisito fundamental para a proliferação de debates democráticos. Diante disso, o adversário natural é aquele que supostamente impede a ocupação: a polícia. Mas examinemos algumas dificuldades suscitadas pelo tema. Primeiramente, em ambientes democráticos a ocupação deve ser empregada como último recurso quando as vias ordinárias estejam bloqueadas e – no caso em tela – o movimento estudantil atual, dominado por partidos políticos que a ele impõem agendas formuladas fora da universidade, tem demonstrado uma gigantesca apatia em suscitar debates frutíferos de onde poderiam nascer reivindicações consistentes por parte dos estudantes. Falo, sobretudo, da reforma das grades disciplinares e de suas implicações (quais temas devem ser incluídos ou modificados no conteúdo das disciplinas? Que tipo de profissionais seriam necessários para fazê-lo? Como melhorar a integração entre universidade e sociedade?). Para compreender por que isso ocorre, passemos ao segundo aspecto da questão: o partidarismo inveterado do movimento estudantil. Basta olharmos a história do movimento comunista desde finais do século XIX para verificar a existência de dois fatores solidários que norteiam sua atuação. O primeiro é a identificação de um inimigo mediato (o capital) e de um inimigo imediato (governo, patrões, instituições, etc..) contra os quais a luta da militância se deve dirigir; como o inimigo mediato não é palpável, sua atuação deve ser combatida enquanto materializada nas ações dos inimigos imediatos. O segundo é a formação de coalizões para levar esse combate a cabo, materializada pelas políticas de “frente ampla”. Voltando para nosso cenário atual, verificamos que a frente ampla do movimento estudantil é sempre formada com os sindicatos de funcionários promotores de greves, identificados como setores avançados e progressistas da comunidade universitária.
Mas esse caráter progressista mesmo deve ser colocado em questão. A reivindicação mais freqüente dos funcionários é o aumento salarial, temperado pela exigência de mudanças nas condições de trabalho. Sem entrar no mérito de cada campanha em particular, mas examinando a maneira como essas demandas são formuladas nos jornais publicados por sindicatos e movimento estudantil verificamos freqüentes distorções e provas de desconhecimento sobre legislação administrativa, lei orçamentária e organização da carreira no serviço público; distorções efetuadas com a finalidade de simplificar questões complexas e concentrar a culpa em algum bode expiatório (reitor, governador, polícia, etc..).
Se o caráter progressista dos blocos de reivindicações formados por estudantes e funcionários pode ser colocado em questão (e, uma vez que toma como palavras de ordem ideias vagas e alheias à realidade, com certeza pode)os atos de ocupação por eles praticados em nome desses blocos também tem sua “bondade em si” colocada em xeque. Muitas vezes as vias ordinárias abertas pela democracia para a discussão e solução dessas questões não são sequer invocadas, devido ao seu desconhecimento ou à simples malícia.
Com isso, vemos que a concepção corrente de autonomia universitária é bastante distorcida e eventuais ações policiais para inibir atos de ocupação (respaldados por decisão judicial, como ocorreu na USP) não podem ser encarados como afronta à liberdade dos alunos, mas, ao contrário, como ações necessárias para o funcionamento normal e democrático da universidade, que pressupõe a atuação de todos os seus órgãos. O interesse em manter a polícia longe da universidade só serve, assim, àqueles que desejam ver os centros produtores de conhecimento como uma cabala, isolados de parte importante da sociedade e de cujo interior só se ouvem palavras ininteligíveis, intercaladas com gritos de “socorro!”.