A
figura de Karl Marx foi um espectro que rondou toda a minha vida escolar –
desde o ensino fundamental até o superior. Especialmente nos cursos de ciências
humanas, o conteúdo era basicamente moldado por ideias de cunho marxista, como
luta de classes, dialética, relações sociais de produção, contradições entre
forças produtivas e relações de produção, modo de produção, etc. No presente
texto pretendo analisar brevemente a maneira como tais conceitos influíram no
meu aprendizado em duas disciplinas das mais importantes: história e literatura
(com repercussões também em redação).
Em meu currículo escolar de
história, a cronologia era interpretada com base na teoria dos modos de
produção proposta por Marx na “Ideologia Alemã” e desenvolvida com maior
detalhamento nos Grundrisse e no
prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”, que tem como
substrato a ideia de que o trabalho humano é o elemento fundante da vida e da
cultura em todos os seus aspectos: formações econômicas pré-capitalistas, modo
de produção feudal, modo de produção capitalista. A passagem de um modo de
produção ao outro se dava quando as forças produtivas (compostas basicamente
pelos instrumentos de trabalho e pelo próprio trabalhador) entravam em
contradição com as relações sociais de produção (a organização social do
trabalho). Todo o arcabouço cultural era interpretado em termos de uma relação
dialética entre a estrutura (forças produtivas + relações de produção) e
superestrutura (a roupagem ideológica que revestia as relações de domínio que
organizavam o mundo do trabalho, especialmente o direito e as instituições
políticas).
A dialética marxista, diferentemente
do procedimento heurístico de busca pela verdade empregado pela filosofia
grega, concerne ao desenvolvimento conflituoso entre forma e conteúdo de
categorias históricas e não de ideias assumidas por sujeitos humanos concretos.
A passagem de um modo de produção ao outro era interpretada por Marx como um
procedimento dialético, no qual a velha superestrutura lutava para se manter
quando novas forças produtivas e relações de produção lutavam para vir à tona e
se tornarem dominantes. Conforme argumentou Perry Anderson, em um dos livros
que basearam as aulas que tive no ensino fundamental e médio (“Passagens da
Antiguidade para o Feudalismo”), tanto o modo de produção oriental como o
escravista antigo não permitiam uma acentuação do conflito entre forças
produtivas e relações de produção, uma vez que aquelas não se desenvolviam por
conta do entrave produzido pelo trabalho escravo, que não constituía incentivo
para a aplicação da já sofisticada ciência antiga na produção de tecnologia, de
modo que o fim do mundo antigo se deu pela destruição pura e simples por meio
de guerras.
A possibilidade de transformação
revolucionária da história se deu apenas com o surgimento e desenvolvimento da
burguesia (cuja formulação clássica foi dada por Marx em O Manifesto Comunista). Esta última venceu as amarras da tradição
e, pela sua capacidade inovadora, desenvolveu as forças produtivas até níveis
nunca antes vistos. Mas para se alçar a tais patamares, ela foi obrigada a
desenvolver consigo o germe de sua destruição, a classe proletária, cujo
trabalho explorava por meio de relações contratuais aparentemente justas, mas
que ocultavam a extração de tempo de trabalho não remunerado: a mais valia.
O espírito da análise marxiana
norteou as explicações fornecidas nos cursos de humanas que freqüentei. Sua
divisa mais clara é a 11ª tese contra Feuerbach: “Os filósofos não fizeram
outra coisa senão interpretar o mundo, trata-se agora de transformá-lo”. Nesse
sentido, a história contemporânea nos foi apresentada como a história da luta
de classes entre burguesia e proletariado, e a grande angústia da qual
compartilhávamos era aprender que todas as tentativas deste último para vencer
a exploração daquela haviam sido derrotadas. Como jovens idealistas, pensávamos
que nosso futuro era realizar a profecia – ainda não cumprida – de Karl Marx.
Do ponto de vista brasileiro, a
explicação marxiana fornecia dificuldades relevantes, pois vivemos em um país
que não conheceu uma economia propriamente capitalista senão a partir da década
de 1930 (e ainda de maneira muito tímida). Aqui, entre nós, como salientou
Roberto Schwarz em um ensaio clássico, o problema não era econômico, mas o fato
moral da escravidão. Assim, os autores de orientação marxista que povoam nossos
livros didáticos (fundamentalmente Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Nelson
Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Jacob Gorender) foram levados a promover
criativas adaptações ao esquema evolucionista de desenvolvimento histórico dos
modos de produção aventado por Marx. A primeira dificuldade foi o debate sobre
a existência ou não do modo de produção feudal no Brasil; enquanto
historiadores leais ao Partido Comunista Brasileiro, como Nelson Werneck Sodré,
fincavam pé na ideia da existência de feudalismo no Brasil, a solução marxista
mais criativa foi fornecida por Jacob Gorender, para quem não teria havido
feudalismo, mas um modo de produção sui
generis denominado “escravismo colonial” cuja diferença específica em
relação ao escravismo antigo seria sua inserção no processo de acumulação
originária do capital, descrito por Marx no capítulo XXIII de sua obra magna. Sobre
este conceito é necessário dizer algumas palavras. Segundo Marx, o
desenvolvimento do modo de produção capitalista teve como condição de
possibilidade um “pecado original”, que consistiu na separação entre
trabalhadores rurais e forças produtivas (a dizimação do pequeno proprietário
rural medieval), levando os camponeses despojados para as cidades na condição
de fornecedores de mão de obra barata para a manufatura. Paralelamente a esse
processo, ocorrera o saque sistemático das riquezas da América, África e Ásia
pelas potências coloniais, fato que teria possibilitado o grande acúmulo de
capital necessário para a largada da revolução industrial inglesa, no século
XVIII.
Segundo a maior parte dos
historiadores marxistas brasileiros, o grande entrave ao desenvolvimento de
nosso país seria precisamente a persistência da organização produtiva montada
pelo processo de acumulação originária entre nós e que tinha no escravismo sua
pedra angular. Segundo Florestan Fernandes e Celso Furtado, a passagem da
economia brasileira escravista para o capitalismo se dera – ao contrário do
contexo europeu – num cenário de contrarrevolução e criação de um capitalismo
de economia dependente dos grandes centros: de alvo da acumulação primitiva,
passávamos, ato contínuo, à condição de país dependente, governado por uma
“autocracia burguesa” (Florestan Fernandes), marcada por seu autoritarismo e
por um projeto de modernização conservadora, que preservava o arcaico ao mesmo
tempo em que introduzia traços da modernidade.
A análise dessa suposta relação de
dependência foi feita entre nós também no âmbito da crítica literária por
autores que incorporaram o instrumental teórico marxista, notadamente Antônio
Cândido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Paulo Eduardo Arantes. É possível
dizer que o tema central da reflexão desses autores é a formação da literatura
brasileira num contexto de capitalismo dependente. Sabemos que a ideia de
formação (Bildung) foi empregada por
Antônio Cândido a partir de sua leitura dos clássicos do iluminismo alemão,
fundamentalmente Schiller e Goethe, que pensaram o problema da formação do
indivíduo na modernidade, processo marcado por uma dialética conflituosa entre
a afirmação do eu e as estruturas sociais cambiantes no sentido de uma
sociedade burguesa, não mais ancorada na tradição, mas na autonomia individual
(nunca é demais lembrar que o próprio Karl Marx foi profundamente influenciado
por essas formulações). Também cabe colocar em destaque a influência exercida
pelo maior dos críticos literários marxistas sobre as reflexões de Cândido,
Schwarz, Bosi e Arantes: falamos do húngaro Gyorgy Lukács, autor de importantes
textos sobre o realismo, concebido por ele não como um simples movimento
literário, mas como um procedimento de reflexo estético tradutor para a
linguagem literária da dialética que permeia a vida social e os conflitos
individuais (analisados por Marx em termos filosóficos, econômicos e
sociológicos). Segundo Lukács – no que seguem nossos críticos – a forma
literária romance seria típica da modernidade burguesa, tempo em que a posição
do protagonista é ambígua, conflituosa e não se resolve com a integração deste
na sociedade, como se dava nas formas literárias típicas das culturas fechadas
(pré-capitalistas). Essa situação do homem moderno seria solidária ao
desenvolvimento da forma mercadoria, que estabelece relações impessoais entre
os homens através da mediação do valor de troca.
No caso brasileiro, a forma romance
enfrentou sérias dificuldades para se afirmar, segundo Schwarz, especialmente
devido à permanência das relações paternalistas de favor como mediação
fundamental das relações sociais. Aqui, o ideário liberal-burguês desempenhava
a função de ideias fora do lugar, contribuindo para legitimar um quadro arcaico
marcado pela escravidão e pelo patriarcalismo. Por essa razão, a forma
mercadoria estava longe de permear nossas relações sociais no momento em que
surgiram os primeiros grandes romancistas brasileiros: José de Alencar e
Machado de Assis. O resultado dessa configuração foi a exibição de um quadro
caricato da modernidade, que permitiu aos nossos mestres do romance desvendar o
aspecto ideológico do pensamento liberal, que em seu centro (a Europa) parecia
científico e verdadeiro. Por trás do capitalista, dos contratos, da pessoa
livre, dos negócios, surgia na sombra o arcaico, a cultura do favor, a
escravidão, o atraso. Girando fora de seu eixo, as ideias fundadoras da
modernidade capitalista mostrariam no Brasil de Machado, como na Rússia de
Dostoievsky, sua face perversa e opressora.