Friday, February 25, 2011

Kadafi e sua bíblia

Um dos eventos simbólicos mais significativos dos protestos que se multiplicam pela Líbia nas últimas semanas foi a queima em massa de exemplares do "Livro Verde", panfleto concebido e publicado pelo ditador Muammar Kadafi em 1975 - momento de consolidação de seu regime - e que tinha como objetivo expor em linguagem acessível as linhas mestras do sistema de governo sui generis que estava em vias de ser instalado em seu país.
Pela leitura do texto (disponível em português no site: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/livroverde.pdf) salta à vista a influência de bandeiras defendidas pelo radicalismo político soixante-huitard (que tinha como uma de suas reivindicações a emancipação completa do "terceiro mundo"), temperado com elementos de primitivismo tribal que perfazem um conjunto argumentativo que regurgita de falácias de todos os gêneros (todas redutíveis, em última análise, a argumentos ad populum), mas que, possivelmente, soou como música para os ouvidos daqueles que conheceram as dificuldades de se conciliar uma sociedade fundada sobre princípios de organização milenarmente vigentes (a família, o clã, a tribo, a religião) com a indústria e a organização política introduzidos pelo colonizador ocidental.
A doutrina defendida no panfleto é denominada "terceira teoria universal" e tem como substrato a organização de uma democracia direta, isto é, uma forma de governo na qual o povo (conceito que o autor se furta de delimitar) seja o gestor direto de todos os seus interesses sem a intervenção das "máquinas de governar" unilaterais, os partidos políticos que lutavam pelo controle da política parlamentar. Segundo o argumento de Kadafi, os partidos representam automaticamente interesses parciais e a chamada democracia parlamentar ocidental nada mais é que uma ditadura disfarçada. A partir dessa interpretação flagrantemente sumária e unilateral dos fatos, o autor não tem pudores em efetuar um salto mortal para o reino dos valores, bradando (com pontos de exclamação) que o povo tem o direito de assumir seu próprio governo, criando uma nova "máquina de governar" não contaminada por interesses unilaterais. A organização dessa "máquina" seria feita a partir de congressos populares e comitês populares, nos quais seriam decididas diretamente pelo "povo" todas as questões atinentes ao governo. Contra a possível objeção de que a democracia parlamentar se ancora em garantias constitucionais, o ditador replica que estas não passam de formulações arbitrárias, ao passo que seu sistema se ancora na "lei natural". Sobre o fato de que esta - assim como aquela - também necessite de intérpretes não é dito uma palavra.
No tocante à organização econômica, Kadafi propõe a implantação de uma forma de socialismo infensa à divisão do trabalho e que busca se aproveitar das máquinas para alimentar uma economia natural, fundada na família e na tribo, na qual não existem trabalhadores assalariados nem se persegue o lucro e onde as máquinas criam a base para uma sociedade inteiramente produtiva, apta a suprir todas as necessidades materiais dos indivíduos. Ao contrário dos clássicos do marxismo, Kadafi defende o fortalecimento das comunidades naturais, que se desdobram em uma solução de continuidade da família, passando pela tribo, até a nação e cujas funções (incluindo a vingança de sangue) precisam ser preservadas  como unica forma eficiente de coesão social.
O resultado da implantação - regada, é preciso que se diga, por bilhões de petrodólares nos últimos quarenta anos - das políticas do "Livro Verde" está caindo hoje por terra e nos obriga a um conjunto de reflexões a respeito da função da organização interna dos partidos políticos e das mediações que obrigatoriamente se estabelecem entre os interesses parciais que se defrontam na sociedade civil e a formação de um consenso parlamentar capaz de gerar uma situação de governabilidade. Como bem observaram Robert Michels (Os Partidos Políticos, Lisboa, Antígona, 2001) e Angelo Panebianco (Modelos de Partido, São Paulo, Martins Fontes, 2002), os partidos não são expressões imediatas dos interesses sociais aos quais se vinculam, devendo seu aspecto organizacional ser levado em conta como pivô de uma maior ou menor transparência democrática; há, portanto, partidos que se organizam de maneira a proporcionar maiores condições de participação popular do que outros, mas nenhum sistema político na modernidade (seja uni ou multipartidário) pode prescindir desse aspecto organizacional (muito menos os chamados "congressos populares"), de modo que concluir que a democracia partidária é essencialmente ditatorial por conta do desvio que provoca na "vontade popular" é promover uma generalização apressada de casos pontuais (como o golpe nazista de 1933) para toda uma história de relevantes construções democráticas (como o parlamentarismo britânico).
Espera-se que das cinzas do "Livro Verde" brote um solo fértil para o pensamento e a instauração de novas e plurais formas de organização partidária neste deserto em que o petróleo tem servido como combustível para o sectarismo político.

2 comments:

  1. Este sectarismo é muito definido tbém pela parte religiosa além dos petro dólares.
    Dissociar dali o poder da religião na opção política parece impossível a curto prazo, mas em algum momento da história deles um novo caminho iria aparecer. Vamos esperar pra ver a cara dessa combinação entre sectarismo e o nascimento de novas linhas partidárias.

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