Friday, June 24, 2011

O Princípio Responsabilidade

Na faculdade de direito, quando cursamos uma disciplina chamada "direitos fundamentais", salta à vista o gritante contraste entre a pletora de direitos e garantias individuais que vem se avolumando desde a revolução francesa em inúmeras constituições, tratados, declarações e a inefetividade - sociologicamente constatada - dos mesmos frente aos abusos que continuam a ser cometidos contra a dignidade individual. Esse problema fundamental para nossa futura atividade como juristas é sempre deixado em aberto, sendo que não vejo nenhuma discussão que desça do céu estrelado das abstrações e busque enfrentá-lo de maneira sistemática a partir dos dados concretos com os quais nos deparamos na vida cotidiana. Correndo o risco de extrapolar de minhas competências de simples estudante, venho aqui propor a abertura de uma reflexão sobre os direitos fundamentais a partir de uma via pouco explorada: a de sua correlação com a ideia de responsabilidade. Para tanto, chamo em meu auxílio um trecho da obra clássica do cientista político Bertrand de Jouvenel, O Poder (história natural de seu crescimento), na qual o autor discorre sobre a genealogia da ideia de liberdade (o primeiro e mais importante dos direitos fundamentais). Contrariando a tradição inatista abraçada por nossos manuais - cujos mentores são Rousseau e Kant - Jouvenel constrói sua reflexão a partir do método genealógico desenvolvido por Nietzsche, para quem a liberdade é não um atributo inato da personalidade, mas uma construção histórica de milhares de anos a partir de uma situação primitiva de opressão e equalização dos indivíduos denominada "eticidade dos costumes", conjunto de preceitos salvaguardados por violentas sanções e cuja única razão de ser é o asseguramento da coesão coletiva (algo próximo à "solidariedade mecânica" de Durkheim). Sob essa perspectiva, o sinal histórico do surgimento da liberdade seria a possibilidade de um conjunto de indivíduos defender com suas próprias forças uma esfera individual de ação sobre a qual a coletividade não mais teria direito: reduz-se, assim, a força da eticidade dos costumes em prol do surgimento de indivíduos livres e capazes de defender sua liberdade e brota, pela primeira vez, a esfera dos direitos subjetivos. A contrapartida necessária dessa liberdade é o surgimento da responsabilidade individual, pois o indivíduo é livre a um só tempo para defender e vincular seu patrimônio e seu próprio corpo em um compromisso e tem orgulho em poder fazê-lo; como dizia Nietzsche, o indivíduo soberano é aquele a quem "é permitido fazer promessas". Do ponto de vista social, a essa qualidade moral corresponde um conjunto de virtudes que inspiram profundo respeito coletivo por essa classe de homens e - por seu turno - a obrigação de que estes se portem de maneira digna em relação aos que não se encontram nesse patamar. O processo histórico de decadência dessa elite "livre" tem como cerne o fortalecimento do poder do Estado, que se dá concomitantemente à perda das qualidades morais dos homens livres, substituídos por uma arrogante plutocracia, que - por trás do exercício de prerrogativas de cargos públicos - se furta de qualquer tipo de responsabilidade e leva a seu reboque uma classe cada vez mais avolumada de dependentes pobres, facilmente manipulados a partir dos roncos de seus estômagos e impotentes para reagir frente ao abuso de seus dirigentes. Em poucas palavras, o fortalecimento do poder do Estado é inversamente proporcional à efetividade das liberdades individuais. Mas, poderiam objetar, como aplicar uma reflexão feita tendo como cenário o mundo antigo (especialmente a república romana) à atual problemática dos direitos fundamentais? Penso que o estudo genealógico da formação e do desaparecimento das liberdades antigas nos fornecem importantes lições para compreendermos a situação desse começo de século XXI: a primeira delas é a inefetividade do aumento do poder do Estado como assegurador das liberdades individuais; de pouco vale termos um imenso conjunto de diplomas jurídicos contendo garantias se não temos indivíduos fortes e conscientes para defendê-las. Mas como produzir indivíduos fortes em uma sociedade democrática, sem termos que recorrer à anacrônica ideia de uma aristocracia? Ressalta aqui a importância de um sistema de educação básica que fortaleça de maneira enfática a noção de responsabilidade individual e aponte para a necessidade de se corrigir o descompasso atualmente vigente entre demandas coletivas e disponibilidade para se dedicar ao conjunto social. Parece mesmo que a cada grito de parcela da sociedade por mais direitos verificamos seja um enfraquecimento do corpo social (cada vez mais vulnerável ao surgimento de aberrações como gangues armadas) seja a inefetividade do Estado em assegurar o cumprimento de condições mínimas para a fruição desses mesmos direitos. Ora, se o Estado não é capaz nem mesmo de assegurar a integridade física de seus cidadãos (no Brasil morrem cerca de 50 mil pessoas por ano, vítimas de homicídios), é ele capaz de fornecer garantias mais substanciais para cada um dos grupos sem obliterar a possibilidade de autodeterminação de todos? Como dizia o jurista Rudolph von Jhering, o pilar sobre o qual se sustenta o direito é a luta, e o princípio dessa luta é a responsabilidade, que se traduz tanto na tutela dos direitos individuais quanto na virtude cívica em relação ao todo social. Resgatemos o princípio responsabilidade.

3 comments:

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  2. Quero parabenizar o Fabio pelo Blog! Achei uma excelente forma de expor assuntos sobre tais temas e discuti-los
    Gostei muito desta postagem a respeito deste princípio da responsabilidade. A responsabilidade é um assunto inerente a qualquer ser humano sobre qualquer forma que ele se exponha. O ser humano possui seu livre arbítrio, tendo a capacidade de escolher sua “trajetória” no decorrer de sua vida. Porém também cabe a ele a escolha de alternativas que facilitem sua trajetória sem perturbar o seu semelhante, ou melhor, que ajudem na trajetória de todos. Na minha opinião uma moral própria bem estabelecida a partir de uma boa educação e pelo autoconhecimento leva o ser humano a vontade de enfrentar a essa responsabilidade e de combater possíveis distorções da própria moral por concepções errôneas do meio ambiente em que vive

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  3. Olá, Fred, agradeço pelo comentário e pelos elogios. Achei importante remontar à formação histórica da noção de responsabilidade para mostrar como foi um valor adquirido a duras penas pelo homem e como seria desastroso apoiar as múltiplas tentativas que se verifica hoje em dia para dissolver essa noção em entidades abstratas, como "a sociedade", subtraindo os indivíduos, mesmo aqueles que se encontram nas piores situações pessoais, daquilo que efetivamente os caracteriza como humanos (e não como animais): a possibilidade de responder por seus atos. Como vc bem lembrou, a atenção a esse princípio só pode se estabelecer a partir do autoconhecimento e da fundação de uma moral com princípios claros. Pretendo voltar ao assunto em outro texto.

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