Contudo, por trás desses argumentos, vejo que a ideia de estado laico é utilizada como cavalo de batalha, mas seu conteúdo não é bem explicitado pelos debatedores, muitas vezes movidos por intenções dolosas. Visando contribuir para colocar o debate em seus devidos eixos, proponho uma reflexão sobre a ideia de estado laico a partir de suas origens e de sua evolução históricas.
Como sabemos, nos grandes impérios da antiguidade, o estado se organizava com base na religião e seu chefe era, ao mesmo tempo, sacerdote supremo, chegando por vezes a assumir status de divindade, como no caso do faraó egípcio. Na polis grega, a religião constituía instrumento de dominação política, sendo facilmente manipulada e alterada de acordo com as conveniências dos grupos dirigentes. Não é de se espantar que, no momento da fusão entre esses dois tipos de civilização antiga, da qual resultou o império helenístico, Alexandre o Grande não tenha enfrentado resistências por parte do povo ou dos chefes vencidos em se fazer reconhecer como deus.
O surgimento da possibilidade de separação entre estado e religião ocorreu somente quando Nosso Senhor Jesus Cristo proferiu a famosa - e hoje mal compreendida - frase: "dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus". Como podemos entender esse preceito? Em primeiro lugar, no sentido de que o novo povo de Deus não deveria confrontar a autoridade romana constituída, que, àquela época, consistia em um engenhoso e estável edifício de estabilidade política. De outra parte, pela primeira vez na história fez-se uma delimitação do ponto até o qual a colaboração entre o fiel e o estado se deveria limitar: tal ponto consiste no caráter inviolável da consciência individual, verdadeiro sacrário dentro do qual se dá a relação mais íntima entre o indivíduo e Deus. A partir do momento em que o estado romano passou a exigir dos cristãos que prostituíssem suas consciências prestando culto à pessoa do imperador, a necessidade de resistência se fez presente, resultando em numerosos martírios.
Com a queda do império romano, inaugurou-se uma situação histórica sui generis: a figura do estado praticamente desapareceu do mapa europeu, ficando a Igreja Católica como guardiã do patrimônio cultural acumulado pela Grécia e por Roma, o qual foi reelaborado com base nas verdades de fé reveladas e empregado no longo processo de conversão da população bárbara ao catolicismo, que durou cerca de novecentos anos. Como resultado desse processo, constatamos que a cristandade se erigiu em cultura comum de todo o povo europeu, de modo que, ao final da idade média, o conteúdo e a aplicação do direito estavam intimamente integrados ao costume e ao imaginário popular.
Sem embargo das dificuldades enfrentadas no medievo para equilibrar o braço temporal do poder do papado - única instância capaz de realizar determinadas funções públicas naquele contexto - com sua função de guardião da fé (que, ao contrário do que muitos pensam, consiste em garantia da estabilidade do conteúdo da religião contra sua manipulação política, tão comum na antiguidade), o problema da delimitação entre as funções do estado e da Igreja só se agravou de maneira decisiva após o surgimento das monarquias absolutistas, que - conforme já sugerira Maquiavel - não tiveram escrúpulos em se apropriar da sofisticada estrutura institucional construída pela Igreja com a finalidade de subjugar seus povos. Com efeito, uma das grandes mentiras propagadas pelo senso comum historiográfico é aquela segundo a qual a Igreja teria sido a grande beneficiária do antigo regime quando, na verdade - no tocante à sua função essencial: a de evangelizar - foi uma de suas vítimas, ficando muitas vezes prejudicada por interesses políticos dos monarcas reinantes. Com efeito, o grande santo francês do século XVIII, São Luís Maria Grignion de Montfort, não era um frequentador da corte, mas um homem que levava fé e esperança para o povo pobre e necessitado.
Não é de se espantar que os fundadores do primeiro - e até hoje mais sólido - estado laico da história, os founding fathers estadunidenses, sejam tributários de uma tradição inaugurada por um grupo de peregrinos que desejava viver sua fé e fugiu de um estado que se servia da religião de maneira espúria, como arma para travar conflitos políticos. A engenhosa solução elaborada pelos profundamente religiosos fundadores dos Estados Unidos foi a instituição de um estado que não interferisse de maneira alguma em questões religiosas (este é precisamente o conteúdo da primeira emenda à Constituição), circunscrevendo estas ao âmbito da vida cotidiana dos indivíduos. Desse modo, conforme notou Tocqueville, o exercício de qualquer atividade política nos EUA é aberto aos praticantes de qualquer fé; contudo, para ter chances de lograr êxito na eleição para um cargo público, o postulante deve exibir publicamente credenciais de sólida vida cristã.
Podemos concluir, a partir dessa breve descrição da experiência estadunidense, que um estado verdadeiramente laico e democrático é aquele cujas instituições são formalmente separadas dos agrupamentos religiosos, respeitando rigorosamente o princípio da isonomia entre seus cidadãos. Contudo, é preciso notar que o direito não é apenas composto pela norma em sentido formal, mas por um conteúdo culturalmente determinado pelo povo que rege. Por esse motivo, é natural que princípios de origem cristã sejam empregados na elaboração de muitas normas (como é o caso de boa parte daquelas referentes aos direitos humanos) bem como a presença de símbolos cristãos em repartições públicas onde o povo maciçamente professa tal fé.
Penso que as experiências constitucionais estadunidense e brasileira resolveram de maneira satisfatória a questão do estado laico, garantindo o exercício democrático da liberdade religiosa e - ao mesmo tempo - permitindo que a fé majoritária se manifeste em símbolos e princípios que nos ligam à tradição da cultura ocidental.