Monday, November 12, 2012

Sobre o Estado Laico

Movido pela insistência de reduzidos setores da sociedade brasileira, o MPF ingressou com um pedido de liminar visando retirar a expressão "Deus seja louvado" das cédulas de real. Tal iniciativa desencadeou nova onda de protestos contra a presença de objetos e frases que remetam ao cristianismo em repartições públicas e textos legais sob o argumento de que um estado laico não pode dar preferência a nenhum tipo de fé religiosa, mesmo que se trate daquela professada pela maioria esmagadora dos cidadãos.
Contudo, por trás desses argumentos, vejo que a ideia de estado laico é utilizada como cavalo de batalha, mas seu conteúdo não é bem explicitado pelos debatedores, muitas vezes movidos por intenções dolosas. Visando contribuir para colocar o debate em seus devidos eixos, proponho uma reflexão sobre a ideia de estado laico a partir de suas origens e de sua evolução históricas. 
Como sabemos, nos grandes impérios da antiguidade, o estado se organizava com base na religião e seu chefe era, ao mesmo tempo, sacerdote supremo, chegando por vezes a assumir status de divindade, como no caso do faraó egípcio. Na polis grega, a religião constituía instrumento de dominação política, sendo facilmente manipulada e alterada de acordo com as conveniências dos grupos dirigentes. Não é de se espantar que, no momento da fusão entre esses dois tipos de civilização antiga, da qual resultou o império helenístico, Alexandre o Grande não tenha enfrentado resistências por parte do povo ou dos chefes vencidos em se fazer reconhecer como deus. 
O surgimento da possibilidade de separação entre estado e religião ocorreu somente quando Nosso Senhor Jesus Cristo proferiu a famosa - e hoje mal compreendida - frase: "dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus". Como podemos entender esse preceito? Em primeiro lugar, no sentido de que o novo povo de Deus não deveria confrontar a autoridade romana constituída, que, àquela época, consistia em um engenhoso e estável edifício de estabilidade política. De outra parte, pela primeira vez na história fez-se uma delimitação do ponto até o qual a colaboração entre o fiel e o estado se deveria limitar: tal ponto consiste no caráter inviolável da consciência individual, verdadeiro sacrário dentro do qual se dá a relação mais íntima entre o indivíduo e Deus. A partir do momento em que o estado romano passou a exigir dos cristãos que prostituíssem suas consciências prestando culto à pessoa do imperador, a necessidade de resistência se fez presente, resultando em numerosos martírios. 
Com a queda do império romano, inaugurou-se uma situação histórica sui generis: a figura do estado praticamente desapareceu do mapa europeu, ficando a Igreja Católica como guardiã do patrimônio cultural acumulado pela Grécia e por Roma, o qual foi reelaborado com base nas verdades de fé reveladas e empregado no longo processo de conversão da população bárbara ao catolicismo, que durou cerca de novecentos anos. Como resultado desse processo, constatamos que a cristandade se erigiu em cultura comum de todo o povo europeu, de modo que, ao final da idade média, o conteúdo e a aplicação do direito  estavam intimamente integrados ao costume e ao imaginário popular.
Sem embargo das dificuldades enfrentadas no medievo para equilibrar o braço temporal do poder do papado - única instância capaz de realizar determinadas funções públicas naquele contexto - com sua função de guardião da fé (que, ao contrário do que muitos pensam, consiste em garantia da estabilidade do conteúdo da religião contra sua manipulação política, tão comum na antiguidade), o problema da delimitação entre as funções do estado e da Igreja só se agravou de maneira decisiva após o surgimento das monarquias absolutistas, que - conforme já sugerira Maquiavel - não tiveram escrúpulos em se apropriar da sofisticada estrutura institucional construída pela Igreja com a finalidade de subjugar seus povos. Com efeito, uma das grandes mentiras propagadas pelo senso comum historiográfico é aquela segundo a qual a Igreja teria sido a grande beneficiária do antigo regime quando, na verdade - no tocante à sua função essencial: a de evangelizar - foi uma de suas vítimas, ficando muitas vezes prejudicada por interesses políticos dos monarcas reinantes. Com efeito, o grande santo francês do século XVIII, São Luís Maria Grignion de Montfort, não era um frequentador da corte, mas um homem que levava fé e esperança para o povo pobre e necessitado. 
Não é de se espantar que os fundadores do primeiro - e até hoje mais sólido - estado laico da história, os founding fathers estadunidenses, sejam tributários de uma tradição inaugurada por um grupo de peregrinos que desejava viver sua fé e fugiu de um estado que se servia da religião de maneira espúria, como arma para travar conflitos políticos. A engenhosa solução elaborada pelos profundamente religiosos fundadores dos Estados Unidos foi a instituição de um estado que não interferisse de maneira alguma em questões religiosas (este é precisamente o conteúdo da primeira emenda à Constituição), circunscrevendo estas ao âmbito da vida cotidiana dos indivíduos. Desse modo, conforme notou Tocqueville, o exercício de qualquer atividade política nos EUA é aberto aos praticantes de qualquer fé; contudo, para ter chances de lograr êxito na eleição para um cargo público, o postulante deve exibir publicamente credenciais de sólida vida cristã.
Podemos concluir, a partir dessa breve descrição da experiência estadunidense, que um estado verdadeiramente laico e democrático é aquele cujas instituições são formalmente separadas dos agrupamentos religiosos, respeitando rigorosamente o princípio da isonomia entre seus cidadãos. Contudo, é preciso notar que o direito não é apenas composto pela norma em sentido formal, mas por um conteúdo culturalmente determinado pelo povo que rege. Por esse motivo, é natural que princípios de origem cristã sejam empregados na elaboração de muitas normas (como é o caso de boa parte daquelas referentes aos direitos humanos) bem como a presença de símbolos cristãos em repartições públicas onde o povo maciçamente professa tal fé. 
Penso que as experiências constitucionais estadunidense e brasileira resolveram de maneira satisfatória a questão do estado laico, garantindo o exercício democrático da liberdade religiosa e - ao mesmo tempo - permitindo que a fé majoritária se manifeste em símbolos e princípios que nos ligam à tradição da cultura ocidental. 

Wednesday, October 31, 2012

Karl Marx e o Currículo Escolar


           A figura de Karl Marx foi um espectro que rondou toda a minha vida escolar – desde o ensino fundamental até o superior. Especialmente nos cursos de ciências humanas, o conteúdo era basicamente moldado por ideias de cunho marxista, como luta de classes, dialética, relações sociais de produção, contradições entre forças produtivas e relações de produção, modo de produção, etc. No presente texto pretendo analisar brevemente a maneira como tais conceitos influíram no meu aprendizado em duas disciplinas das mais importantes: história e literatura (com repercussões também em redação).
            Em meu currículo escolar de história, a cronologia era interpretada com base na teoria dos modos de produção proposta por Marx na “Ideologia Alemã” e desenvolvida com maior detalhamento nos Grundrisse e no prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”, que tem como substrato a ideia de que o trabalho humano é o elemento fundante da vida e da cultura em todos os seus aspectos: formações econômicas pré-capitalistas, modo de produção feudal, modo de produção capitalista. A passagem de um modo de produção ao outro se dava quando as forças produtivas (compostas basicamente pelos instrumentos de trabalho e pelo próprio trabalhador) entravam em contradição com as relações sociais de produção (a organização social do trabalho). Todo o arcabouço cultural era interpretado em termos de uma relação dialética entre a estrutura (forças produtivas + relações de produção) e superestrutura (a roupagem ideológica que revestia as relações de domínio que organizavam o mundo do trabalho, especialmente o direito e as instituições políticas).
            A dialética marxista, diferentemente do procedimento heurístico de busca pela verdade empregado pela filosofia grega, concerne ao desenvolvimento conflituoso entre forma e conteúdo de categorias históricas e não de ideias assumidas por sujeitos humanos concretos. A passagem de um modo de produção ao outro era interpretada por Marx como um procedimento dialético, no qual a velha superestrutura lutava para se manter quando novas forças produtivas e relações de produção lutavam para vir à tona e se tornarem dominantes. Conforme argumentou Perry Anderson, em um dos livros que basearam as aulas que tive no ensino fundamental e médio (“Passagens da Antiguidade para o Feudalismo”), tanto o modo de produção oriental como o escravista antigo não permitiam uma acentuação do conflito entre forças produtivas e relações de produção, uma vez que aquelas não se desenvolviam por conta do entrave produzido pelo trabalho escravo, que não constituía incentivo para a aplicação da já sofisticada ciência antiga na produção de tecnologia, de modo que o fim do mundo antigo se deu pela destruição pura e simples por meio de guerras.
            A possibilidade de transformação revolucionária da história se deu apenas com o surgimento e desenvolvimento da burguesia (cuja formulação clássica foi dada por Marx em O Manifesto Comunista). Esta última venceu as amarras da tradição e, pela sua capacidade inovadora, desenvolveu as forças produtivas até níveis nunca antes vistos. Mas para se alçar a tais patamares, ela foi obrigada a desenvolver consigo o germe de sua destruição, a classe proletária, cujo trabalho explorava por meio de relações contratuais aparentemente justas, mas que ocultavam a extração de tempo de trabalho não remunerado: a mais valia.
            O espírito da análise marxiana norteou as explicações fornecidas nos cursos de humanas que freqüentei. Sua divisa mais clara é a 11ª tese contra Feuerbach: “Os filósofos não fizeram outra coisa senão interpretar o mundo, trata-se agora de transformá-lo”. Nesse sentido, a história contemporânea nos foi apresentada como a história da luta de classes entre burguesia e proletariado, e a grande angústia da qual compartilhávamos era aprender que todas as tentativas deste último para vencer a exploração daquela haviam sido derrotadas. Como jovens idealistas, pensávamos que nosso futuro era realizar a profecia – ainda não cumprida – de Karl Marx.
            Do ponto de vista brasileiro, a explicação marxiana fornecia dificuldades relevantes, pois vivemos em um país que não conheceu uma economia propriamente capitalista senão a partir da década de 1930 (e ainda de maneira muito tímida). Aqui, entre nós, como salientou Roberto Schwarz em um ensaio clássico, o problema não era econômico, mas o fato moral da escravidão. Assim, os autores de orientação marxista que povoam nossos livros didáticos (fundamentalmente Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Jacob Gorender) foram levados a promover criativas adaptações ao esquema evolucionista de desenvolvimento histórico dos modos de produção aventado por Marx. A primeira dificuldade foi o debate sobre a existência ou não do modo de produção feudal no Brasil; enquanto historiadores leais ao Partido Comunista Brasileiro, como Nelson Werneck Sodré, fincavam pé na ideia da existência de feudalismo no Brasil, a solução marxista mais criativa foi fornecida por Jacob Gorender, para quem não teria havido feudalismo, mas um modo de produção sui generis denominado “escravismo colonial” cuja diferença específica em relação ao escravismo antigo seria sua inserção no processo de acumulação originária do capital, descrito por Marx no capítulo XXIII de sua obra magna. Sobre este conceito é necessário dizer algumas palavras. Segundo Marx, o desenvolvimento do modo de produção capitalista teve como condição de possibilidade um “pecado original”, que consistiu na separação entre trabalhadores rurais e forças produtivas (a dizimação do pequeno proprietário rural medieval), levando os camponeses despojados para as cidades na condição de fornecedores de mão de obra barata para a manufatura. Paralelamente a esse processo, ocorrera o saque sistemático das riquezas da América, África e Ásia pelas potências coloniais, fato que teria possibilitado o grande acúmulo de capital necessário para a largada da revolução industrial inglesa, no século XVIII.
            Segundo a maior parte dos historiadores marxistas brasileiros, o grande entrave ao desenvolvimento de nosso país seria precisamente a persistência da organização produtiva montada pelo processo de acumulação originária entre nós e que tinha no escravismo sua pedra angular. Segundo Florestan Fernandes e Celso Furtado, a passagem da economia brasileira escravista para o capitalismo se dera – ao contrário do contexo europeu – num cenário de contrarrevolução e criação de um capitalismo de economia dependente dos grandes centros: de alvo da acumulação primitiva, passávamos, ato contínuo, à condição de país dependente, governado por uma “autocracia burguesa” (Florestan Fernandes), marcada por seu autoritarismo e por um projeto de modernização conservadora, que preservava o arcaico ao mesmo tempo em que introduzia traços da modernidade.
            A análise dessa suposta relação de dependência foi feita entre nós também no âmbito da crítica literária por autores que incorporaram o instrumental teórico marxista, notadamente Antônio Cândido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Paulo Eduardo Arantes. É possível dizer que o tema central da reflexão desses autores é a formação da literatura brasileira num contexto de capitalismo dependente. Sabemos que a ideia de formação (Bildung) foi empregada por Antônio Cândido a partir de sua leitura dos clássicos do iluminismo alemão, fundamentalmente Schiller e Goethe, que pensaram o problema da formação do indivíduo na modernidade, processo marcado por uma dialética conflituosa entre a afirmação do eu e as estruturas sociais cambiantes no sentido de uma sociedade burguesa, não mais ancorada na tradição, mas na autonomia individual (nunca é demais lembrar que o próprio Karl Marx foi profundamente influenciado por essas formulações). Também cabe colocar em destaque a influência exercida pelo maior dos críticos literários marxistas sobre as reflexões de Cândido, Schwarz, Bosi e Arantes: falamos do húngaro Gyorgy Lukács, autor de importantes textos sobre o realismo, concebido por ele não como um simples movimento literário, mas como um procedimento de reflexo estético tradutor para a linguagem literária da dialética que permeia a vida social e os conflitos individuais (analisados por Marx em termos filosóficos, econômicos e sociológicos). Segundo Lukács – no que seguem nossos críticos – a forma literária romance seria típica da modernidade burguesa, tempo em que a posição do protagonista é ambígua, conflituosa e não se resolve com a integração deste na sociedade, como se dava nas formas literárias típicas das culturas fechadas (pré-capitalistas). Essa situação do homem moderno seria solidária ao desenvolvimento da forma mercadoria, que estabelece relações impessoais entre os homens através da mediação do valor de troca.
            No caso brasileiro, a forma romance enfrentou sérias dificuldades para se afirmar, segundo Schwarz, especialmente devido à permanência das relações paternalistas de favor como mediação fundamental das relações sociais. Aqui, o ideário liberal-burguês desempenhava a função de ideias fora do lugar, contribuindo para legitimar um quadro arcaico marcado pela escravidão e pelo patriarcalismo. Por essa razão, a forma mercadoria estava longe de permear nossas relações sociais no momento em que surgiram os primeiros grandes romancistas brasileiros: José de Alencar e Machado de Assis. O resultado dessa configuração foi a exibição de um quadro caricato da modernidade, que permitiu aos nossos mestres do romance desvendar o aspecto ideológico do pensamento liberal, que em seu centro (a Europa) parecia científico e verdadeiro. Por trás do capitalista, dos contratos, da pessoa livre, dos negócios, surgia na sombra o arcaico, a cultura do favor, a escravidão, o atraso. Girando fora de seu eixo, as ideias fundadoras da modernidade capitalista mostrariam no Brasil de Machado, como na Rússia de Dostoievsky, sua face perversa e opressora.